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Caminhando com as próprias pernas

Até pouco tempo, as distribuidoras de gás natural canalizado só tinham uma opção para compra do insumo que repassa para os consumidores: a Petrobras – por sinal, a petroleira ainda é acionista de grande parte delas. Mas com a saída da única fornecedora do produto, as empresas agora se veem obrigadas a comprar o gás nos mais variados modelos. É como um filho que era acostumado a ter toda sua vida organizada pelos pais, mas que num momento se vê obrigado a caminhar com as próprias pernas.

O mercado brasileiro de gás está em vias de mudar, muito por conta das discussões do programa Gás para Crescer, que desemboca no substitutivo ao Projeto de Lei 6.407/13, que cria um novo marco legal. O programa, como se sabe, surgiu no rastro do programa de desinvestimentos da Petrobras, que priorizou a área de exploração & produção, abrindo mão de setores como o da distribuição de gás.

Mas o que isso significa para o setor? Distribuidoras passam a atuar na atividade de supply, ou seja: poderão ter de ir buscar seus próprios volumes para atender aos seus mercados, seguindo seus próprios planos estratégicos. E caso o PL do Gás seja aprovado pelo Congresso Nacional, novos agentes devem entrar no mercado e acelerar essa realidade. Ainda existem dúvidas a serem respondidas: valerá a pena às empresas de gás canalizado cumprir esse papel? As empresas terão saúde financeira para arcar com os riscos inerentes às negociações para compra e venda da molécula?

Independente das questões em aberto e dos desafios, já se observa a existência de vida após a Petrobras. Uma das empresas que já deu o primeiro movimento nessa direção foi a Bahiagás, que realizou uma chamada pública para a  contratação de 1 milhão de m³/dia de gás de diferentes supridores. No fim da primeira etapa, a empresa recebeu cinco propostas.

Agora, a distribuidora baiana vai negociar com cada uma das ofertantes para definir a entrega do gás e modal será utilizado. O presidente da Bahiagás, Luiz Gavazza, conta que a empresa recebeu propostas de empresas nacionais e internacionais, dispostas a oferecer o volume previsto no edital da chamada, sendo que as ofertas das companhias do exterior predominam sobre as das nacionais. Os valores das propostas variam de US$ 6,50 por milhão de BTU até US$ 10,60 por milhão de BTU, com suprimento via Gasene, gás natural comprimido (GNC) por rodovias, ou gás natural liquefeito (GNL).

O prazo de entrega de propostas encerrou-se final de outubro, após uma prorrogação feita a pedido dos participantes internacionais, já que o meio do ano é verão no Hemisfério Norte, quando ocorre o período de férias, e companhias da região tiveram dificuldades para elaborar propostas.

A data inicial para o fornecimento e o ponto onde o ofertante deverá entregar o produto são dois pontos que serão negociados com o possível novo supridor, definidos a partir de estudos que levarão em conta questões técnicas e operacionais, viabilidade econômica, além da capacidade das estações de distribuição da Bahiagás.

Gavazza acrescentou que das cinco propostas recebidas, três já têm termos de compromisso assinados. A chamada pública é considerada pioneira, por ter sido a primeira vez que uma distribuidora se propõe a comprar gás de um novo supridor, deixando um pouco de lado seu papel puramente de levar o insumo para seus consumidores. “O processo se consolidou como método de solução. E agora estamos na fase de examinarmos as propostas e a viabilidade de cada uma delas”, completa Gavazza.

Mas mesmo com o grito de independência da Bahiagás, não se espera um adeus da distribuidora para a Petrobras. Gavazza ressaltou a importância estratégica do terminal de GNL da Bahia, de propriedade da Petrobras, com capacidade de 14 milhões de m³/dia de regaseificação. Por este terminal pode entrar parte do gás que a empresa baiana vir a comprar de um novo fornecedor. “Quando tratamos sobre suprimento por meio de GNL, temos de levar em consideração do uso do terminal que temos”, adiantou.

Mas antes de acertar o uso do terminal, alguns pontos precisam ser avaliados. Entre eles está o tempo que o navio supridor ficará aportado no terminal até regaseificar o gás e quantas cargas serão necessárias para atender à demanda baiana. São cálculos necessários para acertar o acesso com a Petrobras. Outra opção por onde pode chegar o novo gás é via Gasene, vendido em 2016 para a Brookfield, no pacote que resultou na Nova Transportadora do Sudeste, por R$ 5,2 bilhões.

Assim como as condições de uso do terminal de regaseificação, ele diz que também é necessário saber os critérios de utilização do duto de transporte bem como a contratação de capacidade.

Chamada em pool para o Nordeste

Gavazza adiantou à Brasil Energia que outras empresas de gás do Nordeste também têm demonstrado interesse no processo feito em seu estado. Pensando nisso, a Associação Brasileira das Empresas Distribuidoras de Gás Canalizado (Abegás), tem negociado a criação de uma chamada pública em pool e por região para contratação de suprimento de gás natural. A tendência é que a compra em bloco seja concretizada ao longo do ano que vem, pois a Abegás ainda estuda como estruturar o processo da melhor forma.

O gerente de Planejamento Estratégico e Competitividade da entidade, Marcelo Mendonça, avalia que a chamada em bloco viabilize a infraestrutura, mas muitos itens ainda precisam ser analisados a fim de se ter um processo bem sucedido. Uma empresa isoladamente pode até ter boa contratação de volume, mas pode acabar esbarrando na dificuldade em receber a molécula por falta dessa estrutura.

Se a entrega do gás se dará por meio do city gate, por exemplo, esse aspecto pode demandar gestão da oferta. De acordo com Mendonça, o pool pode solicitar entrega de um volume maior em um ponto de entrega A, direcionando um menor volume para o ponto B. “Hoje, não se imagina um terminal de GNL com menos de 14 milhões de m³/dia de capacidade. A chamada em pool vai ajudar a disponibilizar essa infraestrutura”, exemplificou. Mas o executivo da Abegás avisa: a contratação de molécula envolve riscos, embora aumente as possibilidades das distribuidoras em ter mais opções de compra.

 “Temos de estar consciente que essa nova possibilidade vem atrelada com uma responsabilidade muito grande. Existem agentes que querem uma liberalização maior do mercado mas que não estão dispostos a ter o risco vinculado”, complementou. A chamada pública pode não ser o único caminho. De acordo com Mendonça existem diversas alternativas a serem pensadas e, paradoxalmente, não se deve liberar o mercado, dando oportunidade para as distribuidoras comprarem de novos ofertantes ao mesmo tempo em que se restringe o processo de compra a uma única opção.

A chamada é um instrumento que pode ser usado por distribuidoras estatais, mas no caso de empresas já privatizadas, como a Comgás, que atende a parte do estado de São Paulo, a compra pode seguir outro modelo, como a negociação direta. Nesse aspecto, mesmo estatais já estão recorrendo a tratativas bilaterais. Algumas companhias já negociam diretamente com a Bolivia, como a MT Gás e a MSGás, cujas áreas de concessão correspondem, respectivamente, aos estados do Mato Grosso e do Mato Grosso do Sul.

No fim do ano, as duas companhias anunciaram negociações de parceria com a YPFB, que poderia, inclusive, atuar como sócia nas distribuidoras. Um novo encontro entre as partes está marcado para o final de janeiro, para mais uma reunião. Esse tipo de negociação interessa ao governo de Evo Morales, pois os bolivianos já acenaram que

são favoráveis à manutenção do contrato de venda de 30 milhões de m³/dia ao Brasil. Enquanto esse tema não está definido, tentam garantir sua fatia de venda no mercado nacional por meio da estatal.

Em todo caso, Mendonça vê o mercado como favorável a essa oportunidade e diz que as empresas, embora tenham interesse em contar com a Petrobras como supridora, querem ter a liberdade de poder contar com outras opções de

compra, diversificando o portfólio de oferta. Isso ajuda, de acordo com ele, a tornar o preço do insumo mais competitivo.

 “Hoje há uma multiplicidade de agentes que podem participar como supridor. De imediato, tem a Bolívia, mas produtores nacionais também contam”, analisa. Mendonça avalia que, dentre todas as regiões do país, aquela que talvez tenha maior necessidade de aumento imediato na oferta é o Sul, região que está na ponta final do Gasoduto Brasil-Bolívia (Gasbol) e fica praticamente dependente desse tipo de suprimento. Diante desse cenário, agentes

da região já começam a se movimentar. É o caso da SCGás, de Santa Catarina. O assessor de Segurança, Meio Ambiente e Saúde da SCGás, Willian Anderson Lehmkuhl, disse que o estado já vem recebendo visitas e marcado

reuniões com potenciais supridores e está avaliando as possibilidades desse novo cenário.

Ele adiantou que estão sendo avaliadas questões contratuais, como acordos firmes ou flexíveis de fornecimento, prazos de contratação e a própria questão do transporte. “Estamos ainda avaliando a questão de comprar a molécula com um ou com múltiplos supridores”, disse. Lehmkuhl admite que o assunto é complexo. A distribuidora catarinense tem um grupo de trabalho debruçado sobre o tema, do qual fazem parte um representante da Diretoria Administativa e Financeira, um da Diretoria Técnica, e um representante da presidência.

“Mas ainda há muita especulação de como o PL do Gás vai impactar nesse cenário”, atalhou.

Dificuldades

No entanto, mesmo com a movimentação, há quem seja contra a idéia, como é o caso do consultor Cid Tomanik, sócio do escritório Tomanik Pompeu Sociedade de Advogados. Ele afirmou que as distribuidoras deveriam se concentrar somente ao papel que cabe a elas: levar o hidrocarboneto para os clientes. Entrar no papel de comprar e vender, mesmo montando uma comercializadora, pode criar dificuldades, o que poderia tornar o gás mais caro, em vez de seguir a trajetória desejada.

Isso porque, quem compra, precisa apresentar ao fornecedor garantias de que pode arcar com a contratação da molécula. Estados com dificuldades de caixa e que têm distribuidoras controladas por eles, teriam esse obstáculo. Se o supridor perceber que tais estados não têm condições de oferecer as garantias necessárias, pode elevar o preço de venda, o que seria repassado ao consumidor e retiraria a competitividade do processo.

Para ele, isso pode representar uma extrapolação da competência dos estados, uma vez que o Artigo 25 da Constituição assegura aos estados a atividade da distribuição do gás natural. Mas a compra e venda são papeis que têm que ficar a cargo de uma empresa voltada especificamente a cumprir esse papel. “Acredito que vá além do que é constitucional. Imagina: um estado em dificuldades vai poder oferecer garantias para outro supridor? O estado estaria extrapolando o seu papel”, questionou. Além de assumir um papel que, pela Constituição, não é o seu, a distribuidora ainda teria de arcar com o risco cambial da compra do hidrocarboneto, caso seja fornecido por outro país, no caso da América do Sul, mais provavelmente da Bolívia ou mesmo da Argentina, caso o gás não convencional do campo de Vaca Muerta se confirme como uma opção viável.

Tomanik avisa ainda que essa compra teria de ser abatida das tarifas dos consumidores, sem prejuízo deles. Por outro lado, vê com bons olhos caso o supridor venha ao Brasil vender seu insumo. Cita o caso da estatal boliviana YPFB, e as negociações para entrar no negócio da distribuição no Mato Grosso e no Mato Grosso do Sul. Isso porque a entrada da YPFB como eventual sócia em uma das distribuidoras poderia, inclusive, dar mais competitividade ao preo do gás nestes dois estados. Com preços mais baratos, os estados seriam diretamente beneficiados com a atração de indústrias.

 “Se fizer parte de uma distribuidora lá no Mato Grosso do Sul, esse gás será altamente competitivo”, previu Tomanik. Mesmo que o mercado esteja direcionando-se para uma mudança significativa e as distribuidoras pensem em ampliar seu papel de atuação, há que se ter cuidado e parcimônia para andar com as próprias pernas sem se machucar. Afinal, quem acaba arcando com o bônus e o ônus de todas as negociações, são os consumidores.

Fonte: Brasil Energia Online

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