Os contratos de longo prazo se consolidaram como uma tendência nas negociações entre os produtores de gás natural e as distribuidoras estaduais no Brasil.
Ao menos dez concessionárias de gás canalizado já optaram por garantir, até o início da década de 2030, o seu suprimento de molécula – seja com a Petrobras, seja com agentes privados, como Galp e PetroReconcavo.
A estratégia desses fornecedores, de ancorar volumes crescentes no mercado cativo, em contratos que ultrapassam dez anos de vigência, levanta dúvidas se haverá espaço para o desenvolvimento do mercado livre nesta década.
Afinal, a contratação de gás a longo prazo, pelas distribuidoras, vai travar a migração de consumidores para o mercado livre? Ou pode ter um efeito contrário?
Quando a abertura da indústria do gás, de fato, se concretizará?
A gas week desta semana trata das perspectivas de evolução do mercado livre, diante do novo comportamento de contratação das distribuidoras.
Do ponto de vista do produtor (vendedor) do gás, a preferência por contratos de longo prazo, com as distribuidoras, faz todo sentido no atual contexto de mercado.
Contratos longos (um risco que o cliente livre tem mais dificuldades de assumir) dão previsibilidade aos produtores. Um ponto importante, sobretudo, para a produção de gás associado ao petróleo, que precisa de uma demanda firme.
Fora isso, a distribuidora é um cliente inelástico a preço. As concessionárias precisam garantir a segurança do abastecimento. E como operam com mecanismos contratuais de repasse dos custos de aquisição da molécula, estão menos expostas ao risco de assumirem preços menos vantajosos a longo prazo – uma situação bem diferente daquela de um cliente industrial.
O presidente da Gas Energy, Rivaldo Moreira Neto, destaca que esses fatores se somam ao contexto de um mercado ainda muito concentrado e com baixa concorrência e liquidez.
“É natural, portanto, que haja preferência [do vendedor] pelo mercado cativo, que é um mercado dado, garantido, que paga um preço confortável”, comenta.
E vai ter gás para o mercado livre?
A opção por contratos de longo prazo já é uma realidade em pelo menos dez concessões: Cegás (CE), Comgás (SP), Compagas (PR), Copergás (PE), ES Gás (ES), Gasmig (MG), Gás Natural SPS (SP), Potigás (RN), SCGÁS (SC) e Sulgás (RS).
Num mercado apertado, sem perspectivas de aumento da oferta pelo menos até o fim de 2024 – quando entra em operação o Rota 3 – a preferência dos produtores por compromissos longevos no mercado cativo representa, do ponto de vista do consumidor, menos gás disponível para o mercado livre.
Mas até a página dois… Os acordos mais recentes entre a Petrobras e as distribuidoras, por exemplo, permitem a redução dos volumes contratados pelas concessionárias em casos de migração de usuários da rede para o mercado livre – o que abre algum espaço para o desenvolvimento desse ambiente de contratação no futuro.
“Isso é um incentivo. Como é que um fornecedor mitiga o risco de ter seu volume contratado com a distribuidora reduzido por causa da migração de um usuário para o gás de um concorrente? Indo ele mesmo buscar o consumidor industrial para manter ele no seu portfólio, ainda que a um preço menor”, comenta Moreira Neto.
Existe, ainda, um outro lado da moeda nessa história: ao fecharem com a Petrobras contratos baseados num fator Brent de 11,9% até 2034, as distribuidoras asseguraram um preço que, na ótica da indústria, está longe de trazer uma mudança no patamar de competitividade do gás.
“11,9% é um patamar de precificação alto para um contrato de longo prazo e que não incentiva o consumo. Acredito que haverá um apetite maior da indústria por buscar condições mais competitivas no mercado livre”, disse o CEO da Gas Energy.
O diretor de gás da Abrace (grandes consumidores de energia), Adrianno Lorenzon, faz uma analogia com o setor elétrico, onde as distribuidoras estão hoje sobrecontratadas com uma energia com preços muito mais elevados que os do mercado de curto prazo – o que tem estimulado o mercado livre.
“Mas para que esse movimento aconteça no gás, para o desenvolvimento estrutural do mercado livre, tem que haver uma pressão de competição na oferta. Precisamos de uma força que aumente a oferta de gás – seja a importação de gás natural liquefeito (GNL), seja o gás da Argentina, de Vaca Muerta, ou gás nacional”, comenta
Se não agora, quando
Lorenzon não crê que o mercado livre vá deslanchar nos próximos anos. Acredita, no entanto, na propagação de produtos de curto prazo, para comercialização de sobras dos volumes contratados com as distribuidoras.
“Hoje existe um movimento ainda muito pequeno de competição por conquista de mercado. O gás trocou de mãos, mas existem poucas forças para gerar competição entre produtores, de forma que eles sejam estimulados a irem para o mercado livre oferecendo condições realmente competitivas, atendendo aos requisitos do comprador”, comenta.
Ele cita, ainda, que as regulações estaduais ainda são falhas e travam, muitas vezes, o mercado livre – seja por inserirem penalidades elevadas à migração ou sequer possuírem modelos de contrato para usuário livre.
Moreira Neto complementa dizendo que vê uma janela estreita para o desenvolvimento do mercado livre em 2024 – já que ainda há uma janela de contratação das distribuidoras por acontecer e poucas perspectivas de sobra de gás.
Ele acredita, contudo, que a janela pode se abrir a partir de 2025, quando a Petrobras passa a ter um portfólio menos apertado, já com o gás do Rota 3, e para quando são previstas algumas descontratações por parte dos fornecedores privados.
“Além disso, a mera perspectiva de entrada do gás de Sergipe e BM-C-33 [em 2028] pode criar uma pressão sobre quem tem gás para vender naquele momento para que o faça logo, com preços competitivos, porque o preço tende a cair nos anos seguintes”, complementa.
O diretor de gestão e assessoria da Infinity Energias, Lucas Tocchetto, conta que a assinatura dos contratos entre as distribuidoras e a Petrobras deve intensificar, agora, a corrida dos usuários interessados em migrar para o mercado livre. Em São Paulo, o usuário precisa comunicar a migração três meses antes do fim do contrato com a concessionária local. Existe uma janela, portanto, para que aqueles clientes cujos contratos vencem no fim do ano oficializem a migração ao fim deste trimestre.
“O pulo do gato é o momento em que estamos agora, com o fechamento dos contratos das distribuidoras. Com esses acordos públicos, os consumidores conseguem comparar com mais clareza as condições entre comprar no mercado livre ou seguir com a distribuidora”, comentou.
Tocchetto cita, ainda, que o preço da molécula não é o único peso, na tomada de decisão.
“Às vezes o que viabiliza a migração não é só preço da molécula, mas as flexibilidades contratuais que impactam as penalidades e viram custo para o consumidor”, complementou.
Questionada sobre quantos pedidos de migração existem hoje em São Paulo, a Arsesp, o órgão regulador paulista, informou que estão em análise potenciais casos de migração de usuário para o mercado livre, inclusive no mercado de biometano.
“A Agência tem perspectivas de migração de usuários para o mercado livre, que deve ser aumentada à medida que haja novos volume e ofertantes, por meio da implementação do gas release e da entrada de operação de projetos que trarão volume de gás consideráveis do pré-sal – como o BM-C-33, por exemplo”, esclareceu, em nota.
Durante a chamada pública aberta pela Comgás, para aquisição de molécula, a empresa abriu espaço para que fossem apresentadas ofertas também para o mercado livre. Ao menos uma proposta foi apresentada: a da H2A Soluções Ambientais, para venda de biometano. A concessionária preferiu não comentar sobre potenciais migrações de usuários, sob a alegação de que a chamada ainda está aberta.
Fonte: Epbr