Em artigo publicado pela Globo Rural, o presidente da IBÁ e membro do Conselho Consultivo do RenovaBR, Paulo Hartung afirma que é absolutamente inadiável colocar o desenvolvimento sustentável como requisito primeiro de qualquer atividade humana. A emergência climática e seus impactos ambientais e sociais já agravam o cenário global e se não houver ações enérgicas podem comprometer a viabilidade do planeta às atuais e futuras gerações. A jornada para a construção de um amanhã mais justo e sustentável passa por uma íntima colaboração entre governos, sociedade e o setor privado. Tal consórcio de atores já dá seus passos em contexto internacional, notadamente pela ação da ONU e as Conferências do Clima. Na COP do Clima, que terá um encontro no fim de novembro, em Dubai, será retomado mais uma vez o debate do mercado regulado global de emissões, mecanismo que já era previsto no Acordo de Paris. Trata-se de uma das iniciativas para frear a crise climática e estabelecer limites claros nas emissões de gases de efeito estufa pelo conjunto de entes produtivos, de empresas a nações.
O Brasil, com algum atraso, dá seus passos para constituir seu próprio mercado regulado de carbono, cuja discussão deve tomar corpo no Congresso Nacional nas próximas semanas. O ponto nevrálgico aqui será garantir um sistema robusto, que ofereça segurança jurídica, e que dialogue com as iniciativas internacionais de precificação já em vigor. O mundo caminha em direção à descarbonização da economia e não podemos ficar para trás. Nossa exuberância ambiental inclui a maior floresta tropical do mundo, temos a maior biodiversidade e dispomos de 12% de toda reserva de água doce do planeta. Nossa matriz energética já é 47% renovável, sendo apenas a matriz elétrica quase 80% oriunda de fontes renováveis – índices invejáveis à maioria dos países, que ainda lutam para achar substitutos às fontes energéticas fósseis. Já temos diversas vantagens de partida nesse processo de construção de um novo paradigma mundial. Na seara energética, esse é um caminho que já vem sendo trilhado com muita propriedade por diversos segmentos, colocando o Brasil bem-posicionado para se tornar o maior produtor mundial de combustíveis sustentáveis.
Recentemente, a convite de Leonardo de Pontes, CEO da Cosan Investimentos, visitei a planta da Raízen em Piracicaba (SP) e ali vislumbrei o potencial da veia inovadora do Brasil sob a qual o país pode se inserir com destaque na corrida global pela descarbonização através da bioenergia. A planta, que produz o tradicional etanol de primeira geração (E1G), recebeu investimentos e hoje é a única no mundo que produz o etanol de segunda geração (E2G) em escala comercial. São 30 milhões de litros produzidos por ano a partir do resíduo da geração do E1G e da palha da cana-de-açúcar. Nesse processo circular, que aumenta a produtividade de energia de forma sustentável, a empresa também já está em fase final de construção de uma nova planta anexa que usará os resíduos do processo de produção de E2G para produção de biometano, um produto com mercado potencial no Brasil de US$ 15 bilhões até 2040. Essa unidade de biometano terá capacidade para 25 milhões de m³ do gás e boa parte já tem consumidor. A Raízen já conta com contrato firmado com a Yara Brasil Fertilizantes para fornecimento do biometano, que será utilizado na produção de hidrogênio e amônia verde, este último a matéria-prima dos fertilizantes nitrogenados utilizados na agricultura.
Outra parte será destinada à frota de caminhões da Raízen, que deve utilizar o biogás como parte do combustível, visando à descarbonização da frota. A Scania está desenvolvendo um kit para a empresa, que permitirá os caminhões a diesel receber o biometano como gás natural veicular (GNV). Os testes já demonstram que não há perda de performance quando os veículos recebem o biogás. Há uma fração, ainda, prevista para o gasoduto de distribuição da Comgás, levando o gás sustentável diretamente aos lares dos brasileiros. Em um mundo que luta para descarbonizar suas atividades, o E2G vem se tornando um valioso ativo, sustentável e que emite cerca de 90% menos gases de efeito estufa do que os combustíveis fósseis. O etanol de segunda geração produzido na unidade tem como mercado principal a Europa, que paga um prêmio por esse produto e seus valores sustentáveis. E ainda há muito espaço para crescer: segundo números da McKinsey, o Brasil utiliza apenas 10% da sua capacidade para produção de biometano, que tem potencial para suprir pelo menos metade de toda demanda por gás natural do País.
Por todo esse potencial, o plano da empresa é que esta seja a primeira de 20 plantas de E2G até 2030, das quais cinco já estão em construção. Trata-se de um plano ambicioso, com investimento de R$ 20 bilhões, ancorado nas demandas mundiais pela energia renovável e nos interesses dos mercados europeu, norte-americano, japonês e chinês. Outro segmento que vem investindo na geração de energia a partir da biomassa é o setor de árvores cultivadas. Usando a árvore como uma biorrefinaria, este segmento separa duas matérias-primas centrais: a fibra da árvore, que faz mais de 5.000 bioprodutos, como livros, embalagens de papel, roupas e lenços de papel; e a lignina, parte da estrutura que dá sustentação para as árvores, para produção de energia. Essa lignina, que se encontra no licor preto, um subproduto da produção de celulose e outras formas de biomassa, gera energia para essa agroindústria. Essa autogeração verde já responde por cerca de 70% de toda energia consumida pelo setor. O segmento de celulose, inclusive, é majoritariamente autossuficiente e fornece energia excedente para o Grid.
O desafio da humanidade é sair da rota atual de predominância energética de fonte fóssil para a construção de uma matriz energética verde e resiliente. O Brasil tem essa experiência notável com biomassa, tem sol, vento e um parque de geração hidrelétrica consolidado. Junto ao mercado de carbono, a oferta de energia renovável e bioenergia pode significar ao Brasil a exploração de um mercado potencial de mais de US$ 125 bilhões, calcado na corrida pela transição energética global. O Brasil pode desempenhar um papel muito relevante nesta transição, dados os seus recursos, capacidades naturais e expertises. Mas, primeiramente, o País precisa fazer urgentemente a sua lição de casa: acabar com o desmatamento, a grilagem e o garimpo ilegais que devastam nossos biomas. Precisamos reconhecer e nos conectar com essa tendência de economia verde para podermos participar ativamente dessa nova rota mundial. Ou seja, precisamos fazer das nossas potencialidades oportunidades e prosperidades inclusivas e sustentáveis, deixando de vez no passado a trágica tradição de perder o rumo da história e suas trajetórias de desenvolvimento socioeconômico.
Fonte: Globo Rural