Um novo conflito federativo sobre a regulação do gás natural começa a ganhar corpo entre a ANP e a Arsesp, a agência reguladora de São Paulo, enquanto as duas partes ainda tentam chegar a um acordo para encerrar as divergências sobre a classificação do gasoduto Subida da Serra, da Comgás.
A Arsesp apresentou recentemente uma ampla revisão das regras do mercado livre de gás no estado, contidas na Deliberação 1.061/2020.
A ANP vê nas novas regras, contudo, um novo caso de invasão do regulador paulista sobre as competências federais. Em jogo, dessa vez, estão a fiscalização e autorização do agente comercializador de gás.
Dentro da indústria de gás, o episódio coloca frente a frente as distribuidoras, de um lado; e representantes dos consumidores, comercializadores, produtores e transportadores do outro.
E no embalo da discussão sobre a revisão das regras da Arsesp, há também a articulação do setor de biometano, por mais incentivos regulatórios à cadeia do gás renovável; e a pressão de representantes dos consumidores e produtores/comercializadores sobre a Compass – grupo que desponta como o principal agente privado – e vertical – da indústria de gás paulista.
ANP VÊ SEU TERRENO INVADIDO
O órgão regulador federal se posicionou contra não só aos ajustes recém-propostos pela Arsesp, mas à própria regulação vigente, no atual formato, nos trechos que tratam dos critérios e exigências (e penalidades) do regulador paulista para autorização do agente comercializador. A ANP alega que a Nova Lei do Gás e a Lei do Petróleo conferem expressamente à agência a atribuição de autorizar a comercialização de gás — a exceção é a venda pelas distribuidoras de gás canalizado aos respectivos consumidores cativos.
Por esse motivo, a ANP entende que não cabe à Arsesp cobrar a Taxa de Fiscalização e Controle sobre a Comercialização (de 0,5% do faturamento anual diretamente obtido com a comercialização no estado).
A taxa, já prevista no regulamento vigente, segundo a agência federal, “penaliza os interessados na atividade econômica” e “pode configurar uma barreira à entrada para o surgimento de consumidores livres no estado”.
A ANP reafirmou no fim de novembro sua posição favorável a questionar, no STF, leis e decretos estaduais que entrem em conflito com a competência da União. Reforçou, assim, o entendimento de que normas do mercado de gás de São Paulo, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Maranhão devem ser judicializadas. A ANP também entende que, ao tentar simplificar seus procedimentos e passar a atribuir ao transportador a apresentação do relatório diário de certificação da qualidade do gás, a Arsesp excede seu limite de regulação. Na visão da agência federal, o órgão paulista está propondo acrescentar uma obrigação ao transportador – agente regulado da ANP.
Outro ponto de debate está na competência sobre infrações da ordem econômica pelo comercializador. A ANP alega que cabe à ela atuar pela redução da concentração na oferta de gás. O novo regulamento proposto pela Arsesp acaba com a regra atual que considera como infração à ordem econômica o exercício da atividade de comercialização por um agente – ou grupo econômico – que controle mais do que 20% do volume de gás vendido no mercado livre de São Paulo.
Mas fica preservado o trecho da regulação atual que dá à Arsesp o poder de aplicar a medida acautelatória de suspensão ou a decisão definitiva de cancelamento da autorização para a atividade de comercialização ao agente que eventualmente infringir a ordem econômica.
COM A PALAVRA, A ARSESP
A agência paulista sustenta sua proposta com base na Lei Complementar 1025/2007, do Estado de São Paulo, que atribui ao regulador estadual, respeitadas as competências e prerrogativas federais e municipais, autorizar a atividade do comercializador de gás a usuários livres.
Procurada, a Arsesp respondeu que a Consulta Pública 08/23 visa exclusivamente aprimorar as regras estaduais do mercado livre de gás e que, em relação à competência estadual sobre o assunto, a Constituição Federal deixa claro que a indústria de gás canalizado no Brasil tem regime legal e competência mista (federal e estadual).
Lembra que a Carta Magna de 88 dispõe que é monopólio da União a exploração, importação e transporte de gás; e que é de competência estadual a exploração dos serviços locais de gás canalizado.
A Arsesp esclareceu ainda que a revisão da regulação do mercado livre não faz parte de tratativas com ANP.
A agência destaca ainda que a regulação do mercado livre em São Paulo foi implementada em 2011 e que a abertura ainda não decolou pela falta de ofertante de gás com preços competitivos e acesso às infraestruturas essenciais como gasodutos de escoamento e terminais de regaseificação.
Quem é quem no debate
A tese de invasão de competência da Arsesp, na regulação do agente comercializador, é endossada pela maior parte do mercado: representantes dos produtores/comercializadores (IBP, Abraceel, Voqen), dos consumidores (Abrace, Abividro, Fiesp), transportadoras (ATGás) e produtores de biometano (ABiogás). Com base nisso, defendem a derrubada da taxa de fiscalização e das exigências burocráticas que envolvem o processo de autorização da Arsesp.
A Abrace (grandes consumidores) cita que a Arsesp ultrapassa sua competência regulamentar não só ao exigir que o comercializador receba autorização dela própria, mas ao fixar obrigações e elementos mínimos aos contratos de comercialização.
O IBP defende que sejam eliminadas todas as exigências da Arsesp, para funcionamento do agente comercializador no estado.
O instituto entra, ainda, em outro campo: o debate sobre os limites de competência dos estados na regulação da distribuição de gás natural liquefeito (GNL) e comprimido (GNC) a granel. A entidade alega que esses dois serviços não monopólio da concessionária de gás canalizado e sugere que isso fique claro na nova regulação.
O LADO DAS DISTRIBUIDORAS
As distribuidoras têm manifestado preocupação, nesse debate, sobre a segurança e equilíbrio do mercado. Pregam a necessidade de se criar regras que afastem aventureiros.
A Arsesp propôs acabar com a exigência de apresentação, ao regulador, dos contratos de compra e venda celebrados no mercado livre.
Alega que os acordos já são submetidos à ANP e que as regras atuais não trazem, necessariamente, garantia de lastro – já que o comercializador pode firmar contratos para atendimento simultâneo em diversos estados não fiscalizados pela agência paulista.
As concessionárias estaduais são favoráveis, em geral, à fiscalização da Arsesp sobre os comercializadores.
“A ausência da obrigação para o comercializador apresentar os contratos [à Arsesp] abre um leque de possibilidades para a atuação de eventuais comercializadores inescrupulosos que venham a estabelecer contratos sem lastro ou com lastro sazonal e insuficiente”, argumenta Zevi Kann, da Zenergás, que presta consultoria à Abegás e que foi diretor da Arsesp.
A Abegás, nesse sentido, pede que o regulador paulista aumente as exigências sobre o comercializador, quando propõe que a Arsesp dobre, para R$ 2 milhões, a demonstração de capital social mínimo integralizado ou de patrimônio líquido mínimo para exercício da atividade.
A Comgás segue a mesma linha: “A solidez financeira do comercializador desempenha um papel crucial na salvaguarda da estabilidade do mercado, visando a minimização de riscos financeiros para todos os envolvidos, bem como a capacidade de eventual indenização em caso de dano aos Usuários e Concessionárias”, cita a concessionária, em sua contribuição.
A Abegás também pede, dentre outros pontos, ajustes no prazo de retorno do consumidor livre para o mercado cativo. A Arsesp sugeriu que a concessionária seja obrigada em até três meses – e não mais dois anos – a atender ao pedido do usuário livre para retorno ao mercado regulado. A associação pede seis meses. A Compass pede um ano.
Cerco sobre a Compass
O IBP sugeriu à Arsesp vetar a compra e venda de gás entre a concessionária e comercializadora do mesmo grupo econômico, sem a realização de processos licitatórios públicos.
Uma alusão ao contrato de longo prazo firmado entre Comgás e Compass, para importação de GNL por meio do TRSP.
A contratação de gás pelas distribuidoras é tema da Deliberação 1243/2021, que consta da agenda regulatória da Arsesp, mas o IBP defende a inclusão imediata do assunto na atual deliberação em discussão.
A Abrace, por sua vez, propõe que as prerrogativas do desconto na Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição (TUSD) sejam estabelecidas em patamares objetivos ou sejam “proibidas no tocante a clientes da comercializadora que integra o mesmo grupo econômico que a distribuidora”.
“Assim, toda e qualquer vantagem que pode ser conferida pela distribuidora à sua comercializadora relacionada pode configurar uma mácula ao ambiente competitivo”, argumenta.
O pleito do biometano
A consulta pública da Arsesp abriu espaço também para a articulação do setor de biometano. A ABiogás defende, dentre outros pontos, descontos na tarifa de distribuição para usuários livres que consumam o gás renovável, em relação aos valores praticados para consumidores do gás fóssil. Pleito endossado pela Ultragaz.
A associação do biogás propõe também a revisão da Deliberação 1.171/2021, para tornar o modelo de Contrato de Uso do Sistema de Distribuição (CUSD) para o Usuário Livre de gás mais flexível e interruptível.
A Yara Fertilizantes reforça o pedido. Destaca que a partir de 2024 passará a produzir em Cubatão (SP) fertilizantes e amônia de baixo carbono, pela transição parcial do consumo de gás fóssil para o biometano, mas que os esforços nesse sentido estão hoje “comprometidos pelo atual modelo do CUSD, que possui cláusulas que oneram excessivamente o consumidor de biometano”. Um dos entraves para o desenvolvimento do mercado de biometano é a complexidade das regras existentes em cada estado. na avaliação de Manuela Kayath, presidente da MDC.
Fonte: Epbr