A transição energética está em curso e a indústria de gás natural terá de se reinventar nas próximas décadas. Num cenário de descarbonização acelerada da economia global, o declínio da demanda por gás poderá se tornar uma realidade já a partir dos anos 2030, exigindo do setor novos modelos de negócios. Mas falta consenso sobre o ritmo do declínio do consumo de gás no mundo. E no Brasil, no meio desse debate sobre o real papel do gás num mundo em descarbonização, a indústria espera também a definição dos rumos da política do gás para a reindustrialização do país. O otimismo com o aumento da oferta de gás nacional até o fim da década contrasta com o clima de incertezas sobre o papel que o gás no mercado brasileiro – cujo principal segmento, o industrial, anda de lado há pelo menos uma década, em meio a problemas crônicos de competitividade da molécula. Para aonde vai a abertura do mercado? Qual será o destino da oferta do gás? E a que preço essa molécula chegará ao mercado? Haverá políticas de incentivo para o uso do gás pela indústria e para desenvolvimento de novos usos para o energético? Que papel o gás assumirá na transição energética, num país rico em potencialidades de fontes renováveis? No meio disso tudo, grandes empresas do setor industrial decidem o futuro de suas agendas ESG – e de suas matrizes energéticas. E já há quem esteja, aos poucos, optando pela migração, ainda que parcial, do gás para a biomassa (exemplo da Braskem).
O governo federal apresentou, em janeiro, as diretrizes da nova política industrial de Lula 3. Sob coordenação do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), de Geraldo Alckmin (PSB), o Nova Indústria Brasil (NIB) colocou os biocombustíveis e a eletrificação da frota entre suas prioridades. Sem maiores destaques para o gás, o plano cita apenas “melhorar a oferta de gás no país” como uma das ações específicas para a meta de promoção da indústria verde; e a intenção de introduzir nos editais de concessão de rodovias a instalação de corredores sustentáveis, “incluindo infraestrutura de recarga elétrica com conteúdo local” – sem referências diretas à substituição do diesel por gás natural e biometano, como defendem agentes como a Abegás (distribuidoras) e Abiogás (indústria do biometano). O fórum sobre a política para o gás ficou mesmo por conta do programa Gás para Empregar (GPE) – promessa do início do governo Lula de aumentar a oferta de gás a preços competitivos. No caso dos corredores, há uma interseção ainda com o Ministério dos Transportes, de Renan Filho (MDB). A previsão do governo é apresentar em março ao Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) o relatório final do Grupo de Trabalho (GT) do Gás para Empregar, coordenado pelo Ministério de Minas e Energia, mas que conta com 13 órgãos e entidades públicas, incluindo o MDIC. No GT, o governo abriu muito o leque das discussões setoriais e agora tenta eleger as prioridades – os relatórios preliminares identificaram uma série de fatores que dificultam e encarecem o acesso à infraestrutura do gás.
As discussões sobre políticas para a transição energética, no Brasil, acontecem em meio a uma forte presença de subsídios nos principais centros das cadeias globais de valor – EUA, União Europeia e China, que têm investido pesados recursos públicos na agenda verde. O professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IE/UFRJ), Luiz Martins de Melo, alerta que o Brasil não tem os mesmos recursos de países desenvolvidos e precisa, nesse sentido, ser mais certeiro na escolha de suas políticas de incentivo. “Países de renda média não podem fazer políticas industriais tão abertas… Nós não temos um problema de política industrial, temos um problema político de definir prioridades”, comentou. O NIB, lançado mês passado pelo governo federal, por exemplo, promete R$ 300 bilhões até 2026 para financiar seis grandes missões para a neoindustrialização do país – passando por diferentes áreas como agroindústria, saúde, mobilidade, saneamento, defesa, transformação digital. Melo cita que faz sentido o desenvolvimento da agenda verde – e o gás natural, como combustível da transição – estarem na lista de prioridades. E defende que o Brasil precisa, sim, avançar na expansão da infraestrutura do gás como elemento de competitividade industrial.
Estudo recente da Wood Mackenzie destaca que a indústria do gás terá de evoluir num ambiente de baixo carbono, de um modelo de negócios atualmente focado somente na comercialização de gás para um modelo em que a captura com utilização do carbono (CCUS) torna-se, por exemplo, parte de estratégias integradas de vendas de gás. Nesse novo modelo de negócios, a indústria do gás também passa a incorporar a comercialização de hidrogênio, amônia e créditos de carbono em seu portfólio de soluções. “Os donos de recursos de gás de baixo custo considerarão cada vez mais rotas alternativas de monetização, como o desenvolvimento de amônia azul a partir da produção de hidrogénio de baixo carbono através da reforma do gás com captura de carbono, no lugar das tradicionais exportações de gás”, cita o relatório da Wood Mackenzie sobre o futuro do gás no net zero em 2050. Num cenário de descarbonização mais acelerada, a consultoria projeta um declínio do consumo global de gás nas próximas décadas em quase todos os segmentos do mercado convencional (como industrial). Em contrapartida, o uso do gás como matéria-prima para produção de hidrogênio e como combustível para o setor de transportes cresceria. Não é, contudo, o cenário base da Wood Mackenzie – que pressupõe que a demanda será resiliente ao menos pelos próximos 20 anos e que o mercado de GNL crescerá até 2050. Nesse cenário, a substituição do carvão pelo gás, nas termelétricas, e o CCUS devem continuar a suportar a demanda pelo gás num mundo em transição; e a demanda por gás deve permanecer forte, em 3.800 bcm [bilhões de m3] até 2030 – e diminuir para 2.500 bcm até 2050.
Uma visão diferente daquela da Agência Internacional de Energia (IEA, na sigla em inglês) – que acredita que o consumo global de gás pode atingir o seu pico até o fim desta década. A entidade estima uma redução do consumo global para 3.400 bcm em 2030 e para 920 bcm em 2050. A IEA revisou para baixo as suas projeções anteriores, de 2021. Picos de preços em 2022 abalaram a confiança no gás como uma alternativa acessível ao carvão e ao petróleo, especialmente entre alguns mercados emergentes e economias em desenvolvimento dependentes de importações. Também espera um uso menor do gás para produzir hidrogênio com baixas emissões. Segundo a Wood Mackenzie, as divergências para a visão da IEA se devem ao fato de a agência internacional ser mais otimista quanto aos ganhos com eficiência energética; quanto à substituição do gás por eletricidade no setor residencial; e com a redução da demanda por gás no setor de energia.
O papel do gás na transição é tangenciado, hoje, por debates em diferentes níveis da política energética brasileira. Nas discussões do Gás para Empregar, no Executivo, agentes da indústria têm se articulado no debate sobre a complementariedade do setor com o biometano e o hidrogênio. A Yara, do setor de fertilizantes, por exemplo, defendeu que a injeção de H2 na rede de gasodutos pode ter impacto significativo na operação de equipamentos industriais e que o assunto precisa ser tratado com ampla análise de impacto das externalidades negativas. A Abegás também pautou a questão. Destacou que ainda não há estudos conclusivos sobre o assunto e sugeriu que a ANP incentive o uso das verbas de P&D para estudos necessários para garantir a segurança da injeção nas redes de transporte e distribuição. Relembre: Europa prepara malha de gasodutos para chegada do hidrogênio. Na discussão sobre a sinergia entre o gás e o biometano, a Transportadora Associada de Gás (TAG), controlada pela Engie, e a Abiogás compartilham um pleito: a flexibilização da regra de desverticalização da nova Lei do Gás, para que transportadores possam atuar também na produção do gás renovável. A Abiogás defendeu, de forma mais ampla, a criação do Programa Nacional do Biometano – pleito que ela introduziu também na tramitação do Combustível do Futuro – que escorregou para 2024. Dentre as pautas do setor está a criação de um mandato – modificado em relação ao modelo atual do etanol e biodiesel, que é volumétrico, a partir da adoção de um sistema de certificação de origem; além dos corredores sustentáveis. No Congresso, no embalo da COP28 no fim de 2023, os deputados avançaram com algumas das pautas que podem afetar a indústria do gás, como o marco da captura e armazenamento de carbono (CCS); e do hidrogênio de baixa emissão de carbono (que abriu espaço para o H2 oriundo de fontes fósseis associadas à captura de carbono). A tramitação dos projetos segue em 2024. Em paralelo, na esfera regulatória, a ANP toca um estudo para identificar a necessidade de alterações ou novos dispositivos sobre a atividade de CCS. A agência vai analisar também a possibilidade de mistura de hidrogênio na rede de gás existente (a competência do regulador sobre o assunto ainda depende da aprovação do marco no Congresso).
Fonte: Epbr
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