O Programa Nacional de Biometano, inserido no relatório do projeto de lei do Combustível do Futuro (PL 4.516/2023), promete incentivar o setor a partir de um regime de compra compulsória do gás renovável no mercado de gás natural. A iniciativa atende a um pleito dos produtores de biometano, representados pela Abiogás, mas despertou reações contrárias entre comercializadores e consumidores de gás, representados por sua vez pelo IBP e o Fórum do Gás – que reúne 11 associações empresariais oriundas, sobretudo, do setor industrial. Pelo texto proposto pelo relator, o deputado federal Arnaldo Jardim (Cidadania/SP), produtores e importadores de gás (seja para autoconsumo, seja para comercialização) terão de comprovar, anualmente, a compra – ou consumo – de uma quantidade mínima de biometano em relação ao volume de gás natural que vendem ou consomem. O PL diz, ainda, que os agentes poderão comprovar as metas também por meio da aquisição de um Certificado de Garantia de Origem de Biometano (CGOB), em vez de comprarem a molécula do gás renovável em si. Não se trata, portanto, de um mandato como o existente nos mercados de etanol e biodiesel – biocombustíveis que são obrigatoriamente misturados ao litro da gasolina e do diesel, respectivamente. No caso do biometano, não há obrigação de injeção do gás renovável na malha de gasodutos e mistura ao gás natural, porque os compromissos poderão ser atendidos também com a compra dos CGOBs.
A proposta é que a compra obrigatória comece a valer a partir de 2026, seguindo uma curva crescente: o compromisso de aquisição do biometano parte de uma meta de 1% do volume de gás comercializado no ano civil e deverá chegar em 10% até 2034. Caberá ao Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) definir a rampa de crescimento dos percentuais ao longo desse intervalo. O órgão levará em consideração, nessa decisão, a oferta de biometano e infraestrutura disponíveis; os benefícios da descarbonização a partir do uso do gás renovável; e a preservação da competitividade do biometano e do gás natural frente aos combustíveis concorrentes. O desrespeito às metas poderá resultar em multas aos agentes, no valor de R$ 100 mil a R$ 50 milhões.
A presidente da Abiogás, Renata Isfer, explica que os agentes terão a opção de comprar a molécula de biometano ou o certificado de origem – ou ambos – para fins de cumprimento das metas anuais. O CGOB é um certificado de rastreabilidade lastreado em volume de biometano produzido e comercializado pelo produtor do gás renovável. Será emitido por agente certificador credenciado pela Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), que atestará as características do processo produtivo. Com o certificado em mãos, o agente do mercado de gás poderá aposentar (tirar definitivamente de circulação) o papel, dentro de suas iniciativas próprias de descarbonização. Ou também poderá negociar esse certificado no mercado, para que seja aposentado por um consumidor interessado no atributo ambiental do biometano, por exemplo. A negociação do CGOB será feita em mercados organizados, inclusive em leilões. Isfer cita que a ideia do certificado de origem foi inspirada num modelo do mercado francês. E destaca que o grande mérito desse mecanismo consiste em separar a molécula e o atributo ambiental do combustível. Assim, os produtores de biometano – os emissores primários – podem vender a molécula e assegurar uma fonte de receita adicional com a comercialização do atributo ambiental do gás renovável. Pelos termos do PL do Combustível do Futuro, os comercializadores de gás natural poderão comprar e revender esses certificados para quem está interessado em pagar por isso, como as indústrias com metas de emissões líquidas zero. “Tem consumidor no Brasil que não tem interesse em biometano, tem interesse somente em gás, independente se ele é fóssil ou não… Então, uma distribuidora que precisa do gás com preço mais barato para a modicidade tarifária, por exemplo, ela pode comprar só a molécula e o produtor pode vender o certificado em outro lugar…Com isso, conseguimos endereçar a precificação de um eventual prêmio para o biometano, para quem quer pagar, que é quem vai, ao fim, ficar com o certificado e aposentá-lo”, comentou. O certificado também permite ao produtor do biometano romper fronteiras geográficas e remunerar o seu gás renovável em outras praças – eventualmente sem acesso à rede de gás, por meio da comercialização do certificado de origem. Ainda segundo Isfer, não há risco de sobreposição, por exemplo, com o CBIO – o Crédito de Descarbonização (CBIO), um dos instrumentos do programa RenovaBio. O produtor de biometano pode emitir CBIO e, em paralelo, prover garantia de origem para o consumidor.
Hoje, produtores de biometano já disponibilizam no mercado certificados de rastreabilidade do biometano. Esse tipo de certificado é um instrumento de rastreabilidade de consumo de biometano e não uma redução de emissões certificada. Entre os críticos da proposta do Programa Nacional de Biometano, o Fórum do Gás chama a atenção para o fato de que não está claro ainda como o GHG Protocol, protocolo voluntário para controle de emissões, reconhecerá o biometano no futuro – o que traz incertezas sobre a liquidez dos certificados de origem. “O GHG Protocol pode mudar no futuro? Pode, claro que pode. Mas estamos criando um compromisso de compra obrigatória hoje. Da forma como está, entendemos que há um risco muito grande associado a esse papel”, afirmou o coordenador do Fórum, Adrianno Lorenzon. Ele também cita preocupações quanto ao custo de aquisição desses certificados. “Hoje é um papel que vale qualitativamente, mas não do ponto de vista de inventário de carbono. É importante se discutir a questão do quanto esse certificado pode vir ou não a conversar com o crédito de carbono quando tivermos um mercado regulado. E se lá na frente o crédito de carbono for mais barato do que o certificado de biometano? É muito possível que esse crédito negociado no mercado regulado de carbono seja mais barato do que esse certificado que tem uma demanda obrigatória”, questionou. Em artigo publicado na agência epbr, Paulo Campos Fernandes e Patrícia de Albuquerque de Azevedo, do escritório Kincaid Mendes Vianna Advogados, aprofundam essa questão: a metodologia do GHG Protocol considera os benefícios ambientais do biometano, mas com ressalvas. Estabelece que os atributos ambientais do uso do gás renovável só podem ser considerados se o seu fornecimento se der através de tubulação exclusiva de biometano ou por meio rodoviário – o que limita o potencial de aproveitamento do atributo ambiental do biometano no Brasil. O setor de biometano, por sua vez, confia na consolidação do biometano dentro dos protocolos internacionais de inventários e que a questão será pacificada. A Associação Internacional de Biogás pleiteia a revisão dessa metodologia, para que se permita o uso dos atributos ambientais do energético baseado na apresentação de certificado de origem renovável. O GHG Protocol informou no ano passado que o tratamento a ser dado ao biometano será feito em conjunto com uma revisão geral dos procedimentos do GHG Protocol.
O Fórum do Gás, do lado dos consumidores, e o IBP, do lado dos produtores/comercializadores de gás, entendem que falta um debate mais aprofundado sobre os impactos do Programa Nacional de Biometano. Em manifesto publicado esta semana, o Fórum manifestou preocupação com os impactos do biometano sobre a competitividade do gás. O receio é compartilhado pelo IBP. As duas entidades também defendem que a introdução de um compra obrigatória de biometano limita o poder de escolha das empresas de buscarem a forma mais eficiente para reduzir sua pegada de carbono. O IBP também defende que a política precisa resguardar os contratos já assinados pelos comercializadores.
Fonte: Epbr