Em artigo publicado no Valor, o presidente-executivo da Abividro, Lucien Belmonte, afirma que a trajetória do consumidor de energia no Brasil remete a Sísifo, personagem da mitologia grega condenado a empurrar eternamente uma enorme pedra morro acima. No momento que está prestes a atingir seu objetivo, a pedra despenca e é preciso recomeçar o percurso, num ciclo que se repete indefinidamente. A Nova Lei do Gás é a mais recente miragem a despontar no pico da montanha. Ao estabelecer um modelo de competição para o país superar o monopólio estatal na área, abrindo caminho para que o combustível finalmente seja disponibilizado em condições mais competitivas para os brasileiros, seu sucesso depende de que a sistemática se aplique a todas as etapas da cadeia. Mas, mal o texto foi regulamentado nesse sentido, a Medida Provisória 1.031/21, votada ontem no Senado, provocou uma reviravolta, limitando de maneira irreversível seus estímulos à competitividade. Nos últimos dias, assistimos atônitos às idas e vindas das discussões em torno do texto relativo à capitalização da Eletrobras. O fato é que, como diz a música, “com tanta riqueza por aí, onde é que está, cadê sua fração”, a escolha recaiu sobre o atendimento a interesses específicos em detrimento do todo. Foram mais de 600 emendas nas duas casas legislativas, muitas delas com absurdos tamanhos que a privatização da empresa deve dar prejuízo.
Mais, a sanha intervencionista por trás de boa parte dessas emendas é absolutamente contraditória com os princípios de qualquer privatização, ou seja, a percepção de que o setor privado será mais eficiente na condução dos negócios e terá maior capacidade de investimento, contribuindo para melhorar o ambiente econômico e proporcionando, no final do dia, melhores retornos ao país como um todo. Com a previsão compulsória de 8 GW de térmicas a gás natural, o Legislativo cria um passivo bilionário para o consumidor de energia, retomando inclusive a perspectiva de instalação de gasodutos caríssimos e desnecessários para o abastecimento de usinas em Estados que não têm gás. A manobra, que se tentou sorrateiramente implantar em outras três ocasiões, terá como resultado aumento nos custos, inviabilizando a promessa de competitividade alardeada por ocasião da aprovação da Lei do Gás. Defensores de tamanho absurdo alegam que a instalação de térmicas no interior do Brasil promoverá o desenvolvimento regional. Impossível que realmente acreditem nisso. Basta lembrar das experiências do Mato Grosso e do Maranhão, onde a mera existência da Termocuiabá e do Complexo Parnaíba, respectivamente, não garantiu, conforme informações da Abegás) um consumo industrial sequer.
A energia elétrica também sairá mais cara, em clara contradição com as regras do setor elétrico que tem entre seus pilares a modicidade tarifária. Basta lembrar que, na maioria dos casos, as regiões onde se pretende instalar as usinas também têm baixo consumo de energia elétrica. Portanto, some-se ao custo dos gasodutos e usinas o investimento em linhas de transmissão para transporte da eletricidade aos centros de carga. A contradição é ainda mais gritante quanto ao planejamento do setor. Novas usinas precisam ser instaladas onde façam sentido econômico e técnico (inclusive em termos de disponibilidade de infraestrutura) e têm de disputar nos leilões definidos pelo planejador, para que sua energia seja contratada aos menores preços possíveis. No limite, se é para o Legislativo definir onde e como se dará a expansão do parque gerador nacional, que sejam repensadas a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) e a Secretaria de Planejamento e Desenvolvimento Energético do Ministério de Minas e Energia.
As mesmas questões valem para a contratação compulsória de pequenas centrais hidrelétricas e a prorrogação dos contratos do Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia (Proinfa). Dentre as fontes renováveis, as PCHs são as menos competitivas e as que menos agregam benefícios ao setor elétrico, enquanto a renovação do Proinfa é preocupante diante da redução de custos da energia do tipo de usinas que dele fizeram parte. Certamente usinas a gás farão parte da expansão do parque gerador do país nos próximos anos de qualquer maneira. Nesse processo, a combinação do aumento da produção do insumo no pré-sal e a importância de se reduzir uso de fontes mais poluentes como carvão mineral e óleo combustível e diesel no contexto da transição energética para uma economia de baixo carbono tornam a fonte candidata relevante. Mas esse mesmo contexto exige eficiência máxima, com a identificação de soluções criativas para viabilizar projetos como o de Marlim Azul (565 MW), que entra em operação em Macaé (RJ) no ano que vem usando gás diretamente do poço.
Por fim, o país conta com alternativas mais ecológicas para a eventual interiorização do atendimento de mercados potenciais de gás natural em regiões desabastecidas por gasodutos: o biometano produzido a partir de resíduos agrícolas e aterros sanitários pode ser usado em todas as aplicações do combustível com importantes externalidades ambientais positivas. A competitividade é uma luta constante da indústria para sobreviver no Brasil. As emendas à MP da Eletrobras mostram que não se pode relaxar a vigilância um minuto sequer, sob risco de criação de políticas que promovem desarranjos legais favoráveis a poucos, cujos custos serão cobertos por muitos. Pior, criam incertezas quanto à confiabilidade do setor energético brasileiro. Na Grécia antiga, Sísifo sabia que ofensas cometidas contra os deuses estavam por trás de sua sina. Qual foi nosso pecado para acompanhá-lo em tamanho castigo, eternamente carregando toneladas de pedras e jabutis morro acima?
Fonte: Valor Econômico
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