A primeira visita internacional do presidente Luiz Inácio Lula da Silva — à Argentina, a partir de domingo (22) — pode marcar um novo capítulo na história da relação entre os dois países no setor de gás natural.
A reaproximação entre os dois vizinhos representa uma nova chance para sacramentar a integração entre os mercados de gás das duas principais economias da América do Sul — um projeto iniciado há mais de duas décadas, sem ter sido, de fato, concluído.
O secretário das Américas do Itamaraty, embaixador Michel Arslanian Neto, afirmou nesta sexta (20) que o tema da “integração gasífera” deve ser um dos principais eixos estratégicos na nova relação entre os países.
“As conversas estão em curso e coisas podem acontecer durante a visita”, disse.
Em entrevista à GloboNews na quarta (18), o embaixador da Argentina no Brasil, Daniel Scioli, já havia antecipado que a área energética será um dos destaques do encontro entre Lula e o presidente argentino, Alberto Fenández.
“O Brasil está muito interessado em comprar gás para melhorar e tornar os preços mais competitivos, tanto para os domicílios quanto para toda a matriz produtiva. A Argentina tem um investimento estratégico com o gasoduto Nestor Kirchner para exportar gás para o Brasil”, declarou.
Do lado argentino, a expectativa é conseguir o financiamento do BNDES — da ordem de US$ 689 milhões — para o segundo trecho do gasoduto Néstor Kirchner. O projeto vai ampliar o escoamento das reservas não-convencionais de Vaca Muerta, em Neuquén, e pode aumentar a exportação de gás para o Sul do Brasil.
As idas e vindas da integração Brasil-Argentina
Brasil e Argentina já são ligados por gasoduto, mas a integração nunca foi plenamente construída.
O projeto original, do fim dos anos 1990, previa a construção de um gasoduto de 615 km de extensão, ligando Porto Alegre (RS) a Uruguaiana (RS), na fronteira com a Argentina e onde existe uma termelétrica. O empreendimento, da Transportadora Sulbrasileira de Gás (TSB) — consórcio formado por Petrobras, Ipiranga, Repsol e TotalEnergies — foi dividido em três trechos.
Mas apenas os dois extremos, que somam cerca de 50 km, saíram do papel, no início dos anos 2000: o trecho que conecta o Polo Petroquímico de Triunfo (RS) à Porto Alegre, onde termina o Gasoduto Bolívia-Brasil (Gasbol); e o trecho entre Uruguaiana e a malha da Transportadora de Gás del Mercosur (TGM), na Argentina.
O Brasil importa gás da Argentina para atender à termelétrica Uruguaiana — uma usina merchant (que vende energia no mercado de curto prazo) cuja operação não é contínua.
O trecho final do projeto (o Uruguaiana-Triunfo), que permitiria conectar de fato o gás argentino à malha integrada de gasodutos do Brasil nunca se viabilizou economicamente.
O projeto foi deixado de lado com o declínio da produção argentina, a partir de meados dos anos 2000. A importação de gás do país vizinho foi, então, interrompida em 2009 e a térmica Uruguaiana descontinuou suas atividades — a geração foi retomada desde então sempre em caráter emergencial, por períodos temporários.
As novas perspectivas da indústria argentina de gás, capitaneada pelo aumento da produção de gás não convencional da formação de Vaca Muerta, reacenderam o plano de integração entre os dois países. E trazem uma nova chance para viabilizar o gasoduto Triunfo-Uruguaiana.
Desde 2019, pelo menos, empresários argentinos do setor de gás têm manifestado interesse em reaproximar os dois mercados.
Logo em seu primeiro ano de governo, em 2020, Alberto Fernández ensaiou uma aproximação com Jair Bolsonaro sobre o intercâmbio do gás, mas a parceria não chegou a ser concretizada.
A expectativa argentina é que o assunto avance com Lula — cuja busca por proximidade com líderes de países vizinhos contrasta com o isolamento diplomático do governo Bolsonaro.
Na posse de Lula, Fernández afirmou que será, agora, “muito mais fácil falar de integração”.
Em 2005, em seu primeiro mandato como presidente, Lula e os presidentes da Argentina (Néstor Kirchner) e Venezuela (Hugo Chávez) chegaram a lançar um plano ambicioso de construção do “Grande Gasoduto do Sul” — que conectaria os três países e poderia chegar a 15 mil km de extensão.
O projeto multibilionário nunca passou do plano das ideias — e da propaganda política de um projeto político de aproximação dos países da América do Sul com governos de esquerda.
Duas décadas depois…
Depois de anos fora da agenda, a integração energética do Cone Sul volta à pauta. O cenário do mercado brasileiro, contudo, é bem diferente daquele do início dos anos 2000 — quando o país passou a importar gás da Bolívia e Argentina.
O Brasil, naquela época, ainda não contava com a produção do pré-sal. A principal fonte de gás do mercado brasileiro era o pós-sal da Bacia de Campos e a incipiente importação da Bolívia.
A produção brasileira, inferior a 40 milhões de m3/dia, correspondia a cerca de 25% dos patamares atuais e o mercado consumidor não passava dos 15 milhões de m3/dia — um terço do atual mercado não termelétrico do país.
O mercado brasileiro, hoje, também é mais aberto — embora a Petrobras ainda se mantenha como agente dominante. E o Brasil, com seus terminais de gás natural liquefeito (GNL), tem também mais opções de importação.
O tabuleiro do gás no Cone Sul
A reaproximação com a Argentina ocorre num momento também de mudanças no tabuleiro do mercado de gás do Cone Sul.
A Argentina caminha para a autossuficiência nos próximos anos, com o desenvolvimento de Vaca Muerta, e o gás boliviano hoje exportado para os argentinos pode ficar disponível para o Brasil na segunda metade da década.
O futuro do papel da Bolívia enquanto supridora do mercado brasileiro, contudo, é incerto.
A Wood Mackenzie prevê que a produção de gás boliviano cairá mais rápido do que o esperado e o Brasil pode não dispor do energético do país vizinho ao fim da década A previsão é que os bolivianos, hoje grandes exportadores, passem a importar gás, se não houver novas descobertas no país.
Esse cenário, porém, não é um consenso no mercado. A Gas Energy, por exemplo, também prevê um declínio na produção boliviana, mas estima que o país vizinho produzirá entre 24 milhões e 25 milhões de m3/dia em 2030, se não houver novas descobertas — mais que suficiente para abastecer o consumo interno, projetado em 14 milhões de m3/dia e vender o restante para o país.
Em comum nas duas projeções, está o fato de que haverá cada vez menos gás boliviano disponível para o Brasil.
Resistência de ambientalistas
Enquanto Lula e Fernández discutem a integração do gás, ambientalistas fazem pressão contrária.
“Se o Brasil apoiar esse projeto, estará usando dois pesos e duas medidas em sua política internacional: enquanto conversa com países amazônicos sobre a necessária preservação da floresta para o enfrentamento da crise climática e cumprimento do Acordo de Paris, com a Argentina o Brasil estaria apoiando uma iniciativa que aumenta não só a emissão de gases de efeito estufa, como também a dependência econômica dos dois países sem relação aos combustíveis fósseis”, destacou a ONG Climainfo.
Vaca Muerta é um projeto de extração de gás por meio de fracking (fraturamento hidráulico) — técnica que desperta oposição de ambientalistas.
Fonte: Epbr
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