Considerado por grande parte dos especialistas como o combustível da transição energética para uma matriz de baixo carbono, por ser o mais limpo dos hidrocarbonetos, o gás natural é a aposta do setor elétrico para o futuro das usinas termelétricas, tidas como essenciais na cobertura das renováveis eólica e solar, fontes intermitentes que geram energia ao sabor da natureza.
O Plano Decenal de Energia 2030 (PDE 2030), planejamento oficial feito pela estatal Empresa de Pesquisa Energética (EPE), prevê que a capacidade instalada das térmicas a gás vai saltar de 14,1 gigawatts (GW) em 2020 para 22 GW em 2030. Pelo PDE, de 2026 a 2030 entrarão no sistema 12,33 GW em térmicas a gás.
Paralelamente, o mesmo PDE calcula que a capacidade em térmicas a carvão e a diesel/óleo combustível, as mais poluentes, cairá no mesmo período, respectivamente, de 3 GW para 0,7 GW e de 4,4 GW para 0,4 GW.
O PDE é o planejamento oficial de longo prazo. Ele estima a expansão e as fontes adequadas com base em determinadas premissas atualizadas anualmente. A controvérsia em relação às térmicas a gás começa quando se discutem as características de seu uso e, consequentemente, a forma de transporte desse gás.
O Plano Decenal de Energia 2030 propõe que a expansão das térmicas seja concentrada na operação flexível, ou seja, usinas que ficam de prontidão para serem acionadas instantaneamente pelo ONS sempre que a demanda exigir, no jargão setorial, o acionamento na ponta. Mais do que como supridoras de energia, elas funcionam como reserva de potência.
Esse tipo de usina é alimentado por gás estocado nas proximidades, usualmente um navio transportador de gás natural liquefeito (GNL) atracado ao lado de uma planta de regaseificação que abastece a térmica.
Para elas, o gás importado é mais competitivo do que o produto nacional, cuja fonte principal está nas reservas do pré-sal. É principalmente com ele que parte do setor conta para uma expansão bem maior das térmicas.
Nesse caso, o mais vantajoso é que gás chegue à usina por dutos de fornecimento constante, obrigando que a térmica fique o tempo todo ligada, uma operação inflexível, ao modo das nucleares, que serve de base, ou suporte, para garantir o suprimento do Sistema Elétrico Nacional (SIN). A base do Brasil hoje é hidrelétrica, que pode ser usada também na ponta.
O presidente da Abraget, Xisto Vieira, entende que a expansão das térmicas a gás deve ser pelo menos 30% a 35% maior do que o previsto pela EPE para 2030, alcançando cerca de 30 GW, com ampla participação de inflexíveis na base.
Para ele, o PDE 2030 refletiu o momento em que foi elaborado, daí o foco da EPE nas flexíveis. Como as hidrelétricas enfrentam crescente dificuldade de expansão, especialmente ambiental, e de armazenamento de água nos reservatórios das usinas atuais, culpa da crise hídrica de quase uma década, Vieira entende que o suporte futuro está nas térmicas a gás inflexíveis e nas nucleares.
“As inflexíveis [a gás] têm que ser colocadas de forma econômica, têm que ser precificadas”, diz, ressaltando que se elas estivessem hoje sendo usadas na base evitariam o acionamento excepcional pelo ONS de térmicas caras e poluentes.
Esses acionamentos, por serem fora da ordem natural dos preços, são cobrados “por fora” dos consumidores, via uma taxa chamada Encargo de Serviços do Sistema (ESS), mascarando a formação de preços da energia.
Para Roberto Brandão, coordenador de geração e mercados do Grupo de Estudos do Setor Elétrico da UFRJ (Gesel/UFRJ), todas as alternativas são viáveis, a depender do preço. Com as fontes solar e eólica cada vez mais baratas, chegando ao ponto de competir com o gás no Texas (EUA), onde o gás é o mais barato do mundo, é natural que a EPE veja a térmica a gás como complementar.
“Por que não inflexíveis? Porque, por enquanto, são caras”, pergunta e responde, ressalvado que se o Brasil conseguir aumentar a competitividade do gás elas serão muito bem-vindas. Outro ponto de atenção quanto ao gás que Brandão enxerga, por enquanto ainda distante no Brasil, é ambiental: a aversão aos combustíveis fósseis que cresce cada vez mais nos países desenvolvidos.
Na opinião de Wagner Victer, ex-secretário de energia do Estado do Rio de Janeiro e hoje diretor da Alerj, a crise hídrica exige uma alternativa na base e a mais viável é a térmica a gás inflexível com utilização do gás do pré-sal, uma vez que o importado, entre outras coisa, representa risco cambial.
As objeções ambientais ao gás não estão tão distantes. O advogado Sérgio Leitão, diretor do Instituto Escolhas, lembra que a térmica é grande consumidora de água, nem sempre disponível com fartura em algumas regiões do país, especialmente no Nordeste. Para Leitão, se os custos ambientais fossem devidamente mensurados, as térmicas a gás ficariam inviáveis no Brasil.
Fonte: Valor Econômico / Suplemento Energias Renováveis