Todos os países que possuem um grande mercado de gás liberalizado e competitivo têm em comum uma infraestrutura de transporte de gás integrada. Nestes países, os diferentes mercados de gás locais são servidos por uma rede de distribuição de gás por meio de dutos de baixa pressão (distribuidoras), e estão conectados a uma rede integrada de transporte de gás em alta pressão (transportadoras). Esta característica permite que todos os consumidores possam ter acesso a todas as fontes de suprimento de gás, independentemente da sua localização na rede de gás.
A integração dos mercados permite a diversificação das fontes de suprimento, viabilizando a intensificação da concorrência. Este elemento básico de um mercado de gás está fortemente ameaçado no Brasil. Isto acontece por duas razões principais.
A primeira é a localização da demanda, oferta e importações de GNL, maiormente ao longo da costa. Este fato cria fortes incentivos para distribuidoras e grandes consumidores de gás saírem da rede de transporte e buscarem se conectar diretamente a uma fonte de suprimento isolada, seja por produção nacional ou importação de GNL. Alternativa para o gasoduto Subida da Serra opõe dois modelos de desenvolvimento da indústria de gás A segunda é o fato de a regulação do gás no Brasil não definir claramente a fronteira entre as atividades de transporte e as de distribuição, notadamente no que se refere à classificação dos dutos de transporte e de distribuição, permitindo que um duto com as mesmas características técnicas possa, na ausência de uma análise criteriosa ou finalística, ser classificado como de transporte ou de distribuição. Um exemplo do problema descrito acima é a disputa atual sobre o gasoduto Subida da Serra que está em construção em São Paulo. A distribuidora Comgás, controlada pela Compass, tem interesse em investir num gasoduto que interligue diretamente sua rede de distribuição a uma nova planta de regaseificação (TRSP) e a uma nova Unidade de Processamento de Gás Natural (UPGN), a serem construídas em Cubatão (SP). Entretanto, este mesmo gasoduto foi classificado como infraestrutura de transporte pela ANP e incorporado já em 2019 ao Plano Indicativo de Gasodutos de Transporte (PIG) da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), levando em conta os aspectos legais e logísticos aplicáveis à conexão de uma nova fonte de suprimento. Desta forma, existe uma indesejada dualidade na classificação do gasoduto (de transporte ou de distribuição) para ligar o mercado da Comgás à nova oferta de GNL e de gás do Pré-sal. Estas duas alternativas podem até utilizar uma mesma infraestrutura, mas são totalmente distintas do ponto de vista regulatório e dos impactos sobre a abertura do mercado de gás nacional.
A primeira alternativa (duto de distribuição) terá como efeito um “ilhamento” do mercado da Comgás, o maior mercado de gás do país. Essa alternativa também irá permitir a completa verticalização do Grupo Compass no Estado de São Paulo: ao construir o gasoduto Subida da Serra por meio da Comgás, a Compass estará em condições de atender à demanda da Comgás de modo integralmente verticalizado, exclusivamente pela Rota 4, e da planta de GNL, sem necessidade de utilização da infraestrutura de transporte existente atualmente no país. Por outro lado, os fornecedores (produtores e importadores) que tiverem interesse em suprir o mercado da Comgás por meio de outros pontos de entrada (TBG, NTS) serão penalizados em relação à Compass pois deverão adicionar uma tarifa de transporte ao preço da molécula. Ao mesmo tempo em que a Compass desenvolve uma estratégia de integração vertical, o programa Novo Mercado de Gás busca criar um mercado integrado de gás no Brasil, por meio da implementação do sistema tarifário no sistema de transporte por entrada e saída, criação de áreas de mercado de capacidade de transporte, de acordos de interconexão entre sistemas de transporte, além da criação de um mercado organizado de gás (bolsa de gás).
Verifica-se, assim, que as alternativas em concorrência para construção do gasoduto Subida da Serra não apenas definem formas diferentes de investir e de financiar o empreendimento, mas representam o confronto de dois modelos de desenvolvimento da indústria de gás no Brasil. Além disso, a construção do gasoduto Subida da Serra como gasoduto de distribuição e o consequente “ilhamento” do mercado da Comgás do resto do país terão impactos importantes sobre o resto do mercado. Com a retirada da totalidade, ou de uma parte importante, da demanda da Comgás (na ordem de 13 MMm³/dia) do sistema de transporte de gás nacional, haverá um aumento das tarifas de transporte para os consumidores livres da área da Comgás e para os carregadores e consumidores de gás das demais distribuidoras. Isto ocorre porque os custos totais da infraestrutura de transporte serão divididos por um volume menor de gás transportado. O crescimento consequente das tarifas de transporte de gás para o restante das distribuidoras e consumidores de gás irá aumentar o incentivo para que, na ausência de medidas jurídico-regulatórias harmonizadoras entre autoridades federais e estaduais que permitam uma visão holística do assunto, distribuidoras e grandes consumidores em outras regiões também busquem alternativas de suprimento interligando suas redes diretamente a fontes de suprimento “na praia”.
O processo descrito acima tem um potencial enorme para desintegrar o mercado nacional de gás e limitar de forma irreparável o potencial para competição, além de criar condições estruturais indesejadas que resultarão no aumento do custo do gás em todo o país. Desta forma, é fundamental que as autoridades federais avaliem o problema e negociem com os Estados para criar um modelo de desenvolvimento integrado para a indústria nacional do gás. Isto passa essencialmente por fazer valer a determinação da recém aprovada Lei 11.134/21 (nova lei do gás) que deu poder à ANP para criar uma definição técnica do que é um gasoduto de transporte e promover efetivamente um mercado integrado no modelo de entrada e saída, tal qual adotado nos diferentes países da Europa. Enquanto houver margem para diferentes agentes governamentais e reguladores livremente interpretarem a sua autoridade para aprovar a construção de um mesmo duto, o caminho para a desintegração e a criação de monopólios regionais estará livre de obstáculos. Ademais, é fundamental que as Agências Reguladoras Federais (ANP e Cade) avaliem de forma cuidadosa os impactos econômicos sistêmicos das duas opções para desenvolvimento do gasoduto.
Fonte: Valor Econômico – Edmar de Almeida
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