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O que está em jogo nas discussões sobre gasodutos virtuais na ANP

A revisão das regulamentações da ANP sobre a distribuição de gás natural comprimido (GNC) e liquefeito (GNL) a granel reacende a disputa sobre as fronteiras entre as regulações federal e estaduais no Brasil. O GNC e o GNL são os corações dos gasodutos virtuais (sistemas de transporte de gás natural comprimido ou liquefeito que levam gás para regiões ainda não atendidas por gasodutos convencionais). As distribuidoras de gás canalizado se opõem às propostas da ANP. Alegam que a agência fere a competência dos estados em suas regulações sobre os projetos estruturantes – aqueles que visam a antecipar a chegada do gás a um determinado mercado isolado da rede principal de distribuição de uma concessionária. Mas estão isoladas nessa discussão: entidades ligadas aos produtores (IBP e Abpip) e consumidores (Abrace), por exemplo, pedem que a ANP seja enfática em fixar limites à esfera de atuação dos estados na atividade; e que não retroceda no debate sobre a sua competência para regular a distribuição de gás comprimido e liquefeito – o que o órgão regulador já faz desde os anos 2000. Esta semana, o assunto voltou à tona durante a audiência pública da ANP sobre a nova regulamentação do GNC a granel.

Como parte de sua agenda regulatória, a ANP está revisitando (separadamente) as regulações sobre a distribuição de GNC e de GNL a granel. O objetivo é simplificar as atuais regulamentações e atualizá-las aos novos modelos de negócios do segmento. As regras do GNL a granel, por exemplo, são de 2000 e não traduzem a nova dinâmica do mercado, como a disseminação de novas tecnologias de distribuição de pequena escala (o small-scale). A ANP propõe, dentre outras iniciativas, o fim da etapa de autorização para construção de instalações de GNC e GNL; e a previsão de intermodalidade (as regras atuais refletem o modelo predominante do transporte rodoviário, mas no mercado já há agentes, por exemplo, de olho na distribuição por cabotagem). Na regulação do gás comprimido, a ANP também propõe acabar com as exigências de capacidade mínima dos veículos transportadores. Quer eliminar, assim, barreiras de entrada.

Eneva e Gasmar desenvolvem em conjunto, hoje, no Maranhão, um dos principais projetos de gasoduto virtual do país: A produtora de gás está montando uma infraestrutura de liquefação para levar o gás do Complexo Parnaíba, via caminhão, para a Unidade de Pelotização da Vale de São Luís (MA), a quase 300 km de distância. Enquanto isso, a Gasmar constrói a unidade de regaseificação e uma rede de 4 km de extensão para receber esse gás da Eneva. O projeto marca a chegada do gás à capital do Maranhão a partir de 2024. Parcerias por força da lei no projeto (já que a legislação maranhense impede a Eneva de vender diretamente para o consumidor final, sem que o gás passe pelo sistema de distribuição da Gasmar), as duas empresas têm ideias bem opostas sobre como esse mercado de GNC e GNL (os corações dos gasodutos virtuais) deveria funcionar. A oposição entre as duas é uma sintetização simbólica da atual divisão do mercado sobre o assunto: de um lado os produtores/fornecedores do gás (cujas posições têm sido endossadas também por consumidores e empresas do segmento de GNC/GNL); do outro as distribuidoras, representadas não só pela Abegás, mas também pela Gasmar e Gás do Pará – empresas que têm em comum não só a participação da Termogás (de Carlos Suarez), mas também o momento de maturidade de seus negócios: ambas começam a construir suas primeiras redes de gás canalizado, a partir da chegada de GNL em suas áreas de concessão, ainda que em contextos diferentes.

As concessionárias de gás canalizado pedem que as novas regulações da ANP sobre o GNC e GNL reconheçam as regras estaduais já existentes e dialoguem com elas. Na discussão sobre o gás liquefeito a granel, no início do ano, a Abegás chegou a mencionar que, em estados como Santa Catarina e São Paulo, por exemplo, o fornecimento do gás para plantas de liquefação deve ser feito pela concessionária estadual – e que a regulação do GNL a granel deveria incluir essa possibilidade. As distribuidoras citam que a Nova Lei do Gás atribui à ANP a competência sobre a regulação do acondicionamento para transporte e comercialização de gás ao consumidor final por meio de modais alternativos ao dutoviário, mas que o órgão regulador “articular-se-á com outras agências reguladoras para adequar a regulação”, quando for o caso. O pano de fundo. O GNC e o GNL são, tradicionalmente, uma via auxiliar das distribuidoras, no desenvolvimento da área de concessão, por meio de gasodutos virtuais. As distribuidoras, contudo, têm visto com ressalvas projetos que miram o desenvolvimento de um mercado próprio — sem, necessariamente, estarem vinculados a um projeto estruturante da distribuidora e que podem, no limite, competir com as concessionárias. A preocupação se torna maior, à medida que pipocam, ao redor do país, uma série de agentes dispostos a investir, sobretudo de GNL em pequena escala, no mercado brasileiro – incluindo produtores de gás que veem no negócio uma forma de verticalização e de acessar o mercado consumidor de forma mais ágil. Na audiência pública desta semana, a Gasmar destacou que o principal risco de um negócio de distribuição de GNC e GNL a granel – em que o fornecedor venda diretamente para o consumidor final, sem passar pela distribuidora – é que tire consumidores potenciais da base da concessionária, prejudicando a expansão da rede. Sobretudo em mercados incipientes, que demandam escala para se viabilizarem. As distribuidoras acusam a ANP de ferir o pacto federativo (pela Constituição, cabem aos Estados os serviços locais de gás canalizado). Argumentam que os serviços, no plural, podem incluir a distribuição por meio de GNC e GNL e que deveria caber aos Estados definir as regras sobre essas atividades, dentro do contexto de cada mercado local. “Projeto estruturante é de competência dos estados, é um gasoduto de distribuição com ponto de recebimento. E quem faz gasoduto para atender usuário final são as distribuidoras locais”, comentou o diretor de Logística da Abegás, Mauro Alencar, na audiência pública sobre as regras para o GNC.

A Eneva saiu em defesa da ANP.  Na avaliação da empresa, a agência acerta ao não mencionar, nas novas regulações, o “respeito às legislações ou regulamentos estaduais”. Segundo a companhia, não cabe a uma resolução da ANP expressar de antemão concordância legal a normas genéricas ou desconhecidas A empresa lembra que a diretoria da ANP autorizou, em 2022, a Procuradoria Federal junto à agência a adotar os procedimentos necessários para o questionamento, no STF, normas estaduais que invadam as competências regulatórias e normativas da ANP dispostas na Nova Lei do Gás. Também defende que as atribuições estaduais estão respeitadas e que a ANP acerta ao delimitar a competência da agência federal para autorização/fiscalização de projetos estruturantes com GNC. Os produtores, representados pelo IBP e Abpip, reforçam que não existem, nesse caso, conflitos federativos, porque a Nova Lei do Gás é clara ao atribuir à ANP a regulação do exercício da atividade de acondicionamento para transporte e comercialização de gás natural ao consumidor final por meio dos modais alternativos ao dutoviário. A distribuição de GNL ou GNC a granel é de livre concorrência, e não um mercado regulado, reiterou a Abrace (consumidores). “Não é uma novidade, não deveríamos voltar no debate sobre o que é distribuição ou transporte, qual seria essa linha entre um e outro”, destacou a consultora jurídica da Abpip, Daniela Santos, em referência ao histórico de mais de 15 anos de regulação da ANP sobre as atividades de GNC. Nas discussões sobre o GNL a granel, no início do ano, o IBP chegou a pedir que a ANP seja enfática em fixar limites à esfera de atuação dos estados na atividade; e que proíba os estados de privatizarem ou fazerem concessões para exploração da atividade. Um exemplo: no Maranhão, da Gasmar, ao Estado compete explorar, diretamente ou via concessão, os serviços de gás canalizado em seu território, “incluído o fornecimento direto a partir de gasodutos de transporte e terminais de GNL e outros modais”. Também pede à agência que ela seja mais clara em permitir que os distribuidores de GNL forneçam o produto diretamente a consumidores finais – possibilidade que é objeto de questionamentos das distribuidoras.

Fonte: Epbr