Em artigo publicado no portal Epbr, os advogados Eduardo Dodsworth Tranjan, Alexandre Montoni e Gabriel de Andrade Cavalcanti afirmam que a transição energética é uma das questões definidoras do nosso tempo. E, embora ainda pairem incertezas sobre os contornos que ela irá tomar, também não há dúvidas de que países como o Brasil, dotados de ampla diversidade de recursos, devem explorar todas as alternativas à disposição para alcançar a economia de baixo carbono. Nesse cenário, o biometano desponta como principal contribuição do setor de gás natural. Biometano é o produto da purificação do biogás, o qual, por sua vez, é o gás obtido pela decomposição biológica tanto dos resíduos urbanos oriundos dos aterros sanitários e estações de tratamento dos esgotos, quanto dos resíduos orgânicos agrossilvopastoris. Por previsão das Resoluções nº 886 e 906/2022, da ANP, todo biometano que atende às especificações se torna fungível com o gás natural, podendo ser injetado na malha de transporte e distribuição. O biometano tem o potencial de alavancar o consumo de gás em áreas que não são atendidas por gasodutos de transporte de gás, a partir de soluções locais,
Já existem plantas de biometano operacionais no país e, segundo as projeções feitas pela ABiogás, a atual capacidade produtiva de 1 milhão de m³/dia deve saltar para 7 milhões de m³/dia até 2029. Do ponto de vista da demanda, o biometano representa uma solução cada vez mais procurada para cumprimento das metas de descarbonização, o que leva distribuidoras de gás canalizado e usuários livres a saírem em busca da molécula renovável. Dentre as diversas iniciativas legislativas possíveis para impulsionar o biometano, está em debate o Projeto de Lei nº 528/2020 (também chamado de Projeto do Combustível do Futuro), cuja derradeira versão, já aprovada pela Câmara dos Deputados, dedica o seu capítulo quinto para as medidas e políticas de incentivo à produção e ao uso do biometano, dentre as quais se destaca a inclusão de um mandato para o biometano, objeto de comercialização, autoprodução e autoimportação, dentro das metas definidas pelo CNPE.
Por outro lado, o biometano ainda tem gargalos que devem ser superados para que o potencial de crescimento mencionado acima seja concretizado. No aspecto operacional, a produção das plantas de biometano depende da disponibilidade da matéria orgânica para produção do biometano. A disponibilidade da matéria orgânica, a depender do local e da natureza dos projetos, pode, por vezes, estar sujeita a sazonalidades, o que leva a esquemas próprios de programação e período de entrega do biometano. Essas peculiaridades costumam gerar reflexos nas negociações dos contratos de fornecimento, onde vendedores pleiteiam flexibilidade nas entregas e nos compromissos contratuais de fornecimento (delivery-or-pay) a elas ligadas. Os contratos de fornecimento de biometano são fundamentais para a captação dos recursos necessários à implementação dos projetos e, por conta disso, possuem prazos de vigência longos. Uma vez celebrados os contratos, é usual que os compradores tenham que esperar alguns anos até efetivamente receber o insumo, sobretudo quando as plantas de purificação estiverem em fase de construção. Tendo isso em vista, offtakers buscam se proteger de riscos associados aos atrasos no cronograma das obras e ao descasamento dos preços de mercado. Além disso, os aspectos relacionados à infraestrutura de escoamento do biometano podem demandar das partes soluções alternativas à injeção na rede e ao transporte pelo modal rodoviário, como, por exemplo, as operações de troca de biometano e gás natural (swap), já regulamentadas pela Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo (Arsesp), por meio da Deliberação nº 1.105/2020.
A precificação do biometano, no entanto, continua sendo o maior desafio. O green premium deste energético o torna, em muitos casos, pouco competitivo em relação ao gás fóssil. É justamente nesse ponto que entram em consideração os mecanismos à disposição dos desenvolvedores para baratear a cadeia do biometano. Nos últimos anos, foi viabilizada (i) a inclusão destes projetos no Regime Especial de Incentivos para o Desenvolvimento da Infraestrutura (Reidi), conforme previsto na Portaria Normativa nº 19/GM/MME/2021; e (ii) emissão de CBIOs, à luz da Resolução da ANP nº 802/2019. Em março deste ano, o Governo Federal, ao regulamentar as debêntures de infraestrutura, inseriu a produção de biogás, exceto pela fase agrícola, como setor de caráter prioritário, o que confere a possibilidade de emissão do referido valor mobiliário (art. 4º, III, alínea “c”, do Decreto nº 11.964/2024). O emprego destes mecanismos pode, com toda certeza, alavancar ainda mais o biometano. Por fim, os agentes do setor precisam ainda lidar com as lacunas regulatórias nas agências reguladoras estaduais e com as incertezas tributárias sobre a equiparação do biometano ao gás natural. A indefinição sobre o tratamento que será dado ao biometano na regulamentação da reforma tributária (aprovada no final de 2023) dificulta o cálculo das margens de retorno e impacta na decisão de investimento de patrocinadores dos projetos. O otimismo com um gás limpo e dotado de exponencial espaço de crescimento é mais do que justificado, porém não deve distrair-nos dos desafios que ainda precisam ser superados. Em nossa experiência, a compreensão dos obstáculos dessa nova indústria facilita as tratativas entre as partes envolvidas nos negócios, que constroem soluções que atendam aos interesses mútuos. O momento do biometano está cada vez mais próximo e, para transitar nele, os seus protagonistas deverão temperar o seu potencial com os desafios que ainda se colocam.
Fonte: Epbr – Eduardo Dodsworth Tranjan, Alexandre Montoni e Gabriel de Andrade Cavalcanti