O debate sobre a necessidade de ajustes nos contratos de concessão das distribuidoras de gás natural chegou ao Rio Grande do Sul. Durante o processo de Revisão Tarifária da Sulgás, a área técnica da Agergs, a agência reguladora estadual, recomendou que o Estado revise o atual contrato. Sugere que sejam incorporados, via aditivo, mecanismos que estimulem “a eficiência, a modicidade tarifária e o justo retorno dos investimentos”.
A área técnica da Agergs questiona o crescimento expressivo da margem de distribuição, ano a ano, desde a privatização da Sulgás em 2022, quando a companhia teve seu controle assumido pela Compass. A recomendação ainda precisa passar pelo crivo do Conselho Superior da agência, até que seja encaminhada, de fato, ao governo de Eduardo Leite (PSDB). Fato é que o debate está na mesa.
Uma discussão parecida com a que ocorre em Sergipe, onde a Agrese, o regulador estadual, abriu em julho uma audiência pública sobre a possível adequação do contrato da Sergas. Nos dois estados, os reguladores argumentam que os contratos, assinados nos anos 1990, estão desatualizados; que o arcabouço regulatório evoluiu e que mecanismos de eficiência já foram adotados em outros estados.
Os questionamentos ao atual contrato de concessão da Sulgás constam em relatório assinado pela Diretoria de Tarifas da Agergs, na ocasião da análise do pleito de revisão tarifária da distribuidora para 2024. Cita o documento: “Tendo em vista a tendência ascendente nos últimos anos para o valor da margem bruta, argumentamos pela necessidade de adequação do contrato de concessão à atual realidade macroeconômica do país, uma vez que este incorporou mecanismos almejando preservar a ‘saúde financeira’ da companhia frente ao cenário econômico de hiperinflação da década de 1990”. No Rio Grande do Sul, a exemplo do modelo de Sergipe e da maioria dos estados, a taxa de remuneração anual do investimento da Sulgás é de 20% ao ano – patamar considerado elevado pelos consumidores industriais. Entenda quem é quem no debate.
O modelo regulatório é o cost plus, predominante no mercado brasileiro – salvo exceções como SP, RJ, ES e PR. De acordo com essa metodologia, a tarifa é calculada com base nos custos necessários para prestação do serviço acrescida de uma taxa de retorno preestabelecida e que garante a rentabilidade para a concessionária. Em resumo: é um modelo mais voltado para mercados em desenvolvimento e que permite reduzir o risco do concessionário, já que os custos podem ser repassados para o mercado. O modelo alternativo é o price cap – que define uma tarifa máxima a ser cobrada pelo concessionário no ciclo tarifário. Nesse caso, a distribuidora assume mais riscos, mas é mais incentivada à eficiência, já que se apropria de parte da redução de custos.
A Agergs vê no modelo cost plus algumas ineficiências que comprometem a competitividade do gás no Rio Grande do Sul. A agência também recorre à lei estadual 15.648/2021, que traz, como princípio para prestação do serviço, dentre outros aspectos, a modicidade das tarifas. E aponta para os riscos de fuga de indústrias estabelecidas no estado para outras praças – ou a migração de usuários para combustíveis concorrentes. O regulador gaúcho reconhece que a Sulgás tem o direito, por contrato, de repassar integralmente os custos operacionais aos usuários, mas que o descasamento entre o crescimento das despesas e o volume de gás distribuído “dá um nítido sinal de ineficiência ao mercado”.
O aumento das margens da Sulgás, nos últimos anos, reflete, de certa forma, o próprio amadurecimento gradual da regulação do gás no estado. A metodologia das revisões tarifárias anuais da companhia – que só começaram em 2022 – é um processo ainda em construção. A Agergs só passou a regular o contrato de concessão de gás canalizado em 2021, no movimento da privatização do serviço. Antes disso, os reajustes tarifários da Sulgás eram autorizados pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Infraestrutura (SEMA). O regulador estadual atribui o aumento sucessivo das margens, em parte, ao crescimento da base de ativos e à mudança da base de cálculo da parcela de depreciação dos investimentos. O que diz a Sulgás: Procurada, a distribuidora destacou os esforços da companhia na expansão da rede nos últimos anos, desde a privatização: desde 2022, o número de clientes da concessão subiu de 69 mil para 97 mil. Os investimentos anuais, por sua vez, cresceram de R$ 46 milhões para R$ 100 milhões em 2024, “sempre priorizando a eficiência e os processos de excelência”. A Sulgás cobra respeito ao contrato, o que “garante o ambiente de segurança jurídica e estabilidade importantes para o desenvolvimento do mercado de gás e investimentos no estado do Rio Grande do Sul. E cita que o parecer da área técnica da Agergs é parte inicial do processo de revisão tarifária ordinária anual da Sulgás e que ainda precisará ser aprovado pelo Conselho Superior da agência.
A concessionária pleiteia uma margem bruta de R$ 0,7592 por m3, o que representa um aumento de 62,2% em relação aos valores aprovados em 2023. A Agergs entende que o aumento deve ser ainda maior, de 75,33%, devido, em parte, à inclusão de ajustes de efeitos retroativos da revisão tarifária de 2023. A agência e a distribuidora divergem na forma como esses efeitos devem ser incorporados nas tarifas. A Sulgás propôs à Agergs a diluição dos efeitos da revisão tarifária 2024 por 18 meses, a partir de novembro. A medida permitirá reduzir o impacto imediato para um terço do previsto, para menos de 10% – além da margem, as tarifas são compostas pelos custos de aquisição do gás e impostos. A revisão tarifária no Rio Grande do Sul é anual, com efeitos a partir de maio, mas atrasou em razão da catástrofe climática no estado. A distribuidora alega, no processo, que o atraso impacta o equilíbrio econômico-financeiro da concessão, agravado pelo fato de que a revisão deste ano também incorporaria saldos da revisão de 2023.
A Agrese pretende entregar, até o fim do ano, subsídios para que o governo do estado possa rediscutir os termos do contrato da Sergas. A agência eixos apurou que a tendência é que o regulador estadual recomende a realização de uma Análise de Impacto Regulatório (AIR) – e que, em paralelo, o governo estadual comece a discutir com os sócios na Sergas as alternativas. São três as cartas na mesa, hoje: a redução da taxa de retorno a um patamar mais adequado à realidade econômica atual; mudanças na taxa de depreciação (hoje acelerada, no modelo cost plus); e a regulamentação de novos dispositivos ainda não previstos em contrato, como a conta gráfica. Não está em discussão, atualmente, a migração para o modelo price cap – mudança mais radical que demandaria a construção de um novo contrato. Para registro: a discussão em Sergipe caminha em paralelo à tentativa do governo de Fábio Mitidieri (PSD) de ampliar a participação na Sergas, em meio às mudanças na composição acionária da distribuidora, com a saída da Compass e possível entrada da Energisa. A disputa foi parar na Justiça
A discussão sobre adequação dos contratos de concessão das distribuidoras foi um movimento encabeçado por Sergipe e que ganha novos contornos agora no Rio Grande do Sul, mas ainda estamos falando de casos pontuais. A expectativa no mercado (sobretudo entre os consumidores) é que o caso sergipano abra as portas para debates na mesma direção em outros estados. Efetivamente, a Agrese levantou a bola em discussões com outras agências. Os demais estados, contudo, ainda adotam uma postura mais cautelosa, à espera dos desdobramentos em Sergipe. Questionamentos ao atual modelo existem em outros estados. Em Pernambuco, por exemplo, a área técnica da Arpe citou, no processo de Revisão Tarifária 2023/2024, que, no cenário econômico atual, de maior estabilidade e previsibilidade inflacionária, “percebem-se como excessivas as taxas contratuais de remuneração” da Copergás – sem, contudo, fazer qualquer recomendação por ajustes. “Assim, no âmbito da revisão tarifária observa-se que essas taxas ao tempo em que contribuem na garantia do equilíbrio econômico da concessão, atuam como força oposta à busca pela eficiência dos gastos e à modicidade tarifária”, cita o documento.
Fonte: Eixos