Embora represente uma pequena parcela da matriz energética brasileira, respondendo por 5,5% da eletricidade produzida em 2023, o gás natural está na mira do governo para ter sua participação ampliada nos próximos anos. Apesar de ainda ser considerado poluente, esse combustível fóssil é visto por especialistas como um degrau na transição energética, já que emite menos poluente do que outras opções, como o diesel e o carvão. Não à toa o governo se empenha para que essas termelétricas atuem como sustentação do sistema elétrico uma vez que não há geração suficiente de energia eólica e solar, por exemplo, para suprir a demanda no país.
Diferentemente de outros lugares no mundo, onde o gás natural é usado predominantemente para gerar energia elétrica, no Brasil o produto é utilizado sobretudo pela indústria. Segundo dados da ANP, da Petrobras e da Abegás, compilados pelo MME) enquanto o uso industrial representou mais de 60% do destino do gás natural em 2023, a geração elétrica representou 20%. Mas nem sempre foi assim. Em 2014 e 2015, e em 2021, houve um pico no uso do gás pelo setor elétrico que chegou a ultrapassar o uso industrial. Contudo, em 2023 a tendência se inverteu, e o uso do gás natural para geração de energia foi o menor desde 2011, mesmo com a relativa estabilidade no número de usinas em funcionamento: 181 em 2023. Hoje são 178. Os dados mostram que, apesar dos esforços, o gás enfrenta dificuldades para avançar no Brasil.
No plano de fundo, há uma disputa de visões sobre o papel das usinas termelétricas. Enquanto o setor pressiona pela instalação de térmicas inflexíveis, que tem maior potencial de remuneração, técnicos do governo acreditam que a expansão deve ser direcionada às térmicas flexíveis.
“Somos um país com energia predominantemente renovável, mas a gente não tem um controle sobre a disponibilidade desses recursos a todo instante. Não dá para ter certeza do quanto vai chover, ou da quantidade de vento e sol. A gente aproveita ao máximo esses recursos naturais, que tem menos emissões. Se eu defino que a geração termelétrica deve ser compulsória, eu jogo fora o vento, eu jogo fora a água, eu jogo fora a energia solar, então eu desperdiço um recurso renovável em troca de outro recurso que vai ter maior emissão e maior custo de produção”, argumenta Renato Haddad, Superintendente Adjunto de Geração de EPE. A companhia estatal auxilia na elaboração da política energética do governo por meio de estudos e planejamentos setoriais.
As duas barreiras para o gás
Dois grandes problemas dificultam uma maior difusão do gás natural como fonte de energia elétrica: a concentração de mercado e a falta de infraestrutura. A principal forma de extração de gás no Brasil é o chamado “gás associado”, aquele produzido conjuntamente com o petróleo. Entre janeiro e setembro de 2024, o gás natural associado representou quase 90% de todo o gás produzido no Brasil, de acordo com números da ANP. E esse gás, na ausência de infraestrutura de escoamento, costuma ser reinjetado no solo para potencializar a extração de óleo, ou então é queimado. O dado contrasta com a origem do gás efetivamente utilizado no Brasil: quase 30% dele é importado da Bolívia, em meio ao baixo aproveitamento do produto nacional.
Essa origem associada do gás explica, por exemplo, porque a maior parte das termelétricas a gás estão localizadas na costa. Elas usam o Gás Natural Liquefeito (GNL) – a proximidade de terminais diminui os custos de transporte.
Expansão dos gasodutos
A falta de infraestrutura é, porém, um dilema de mão dupla. Por um lado, não há vantagem econômica em se instalar usinas a gás se não houver garantia de fornecimento da matéria-prima. Por outro, não há incentivo para a instalação de gasodutos se não houver quem compre o gás a ser transportado. O governo tentou solucionar a questão subsidiando a construção de gasodutos. A ideia não avançou. A ideia do chamado “Brasduto” já foi incluída, por exemplo, no projeto da atual Lei do Marco Legal do Gás (hoje, Lei nº 14.134/21) e no projeto de lei (PL) do risco hidrológico (PL nº 3.975/19). Sem demanda suficiente para gerar interesse da iniciativa privada, o governo propôs duas formas de custear a construção. A primeira foi a oneração da Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), proposta inserida como um “jabuti” na medida provisória (MP) da Capitalização da Eletrobras (MP nº 1.055). O resultado, portanto, seria o encarecimento da conta de luz – uma medida impopular. Outra fonte de recursos também cogitada envolve a Empresa Brasileira de Administração de Petróleo e Gás Natural S.A. (PPSA), estatal que cuida da venda do óleo do pré-sal. A proposta consta do PL nº 414/21, da reforma do setor elétrico. O projeto está parado na Câmara desde 2021, tramitação travada também após reportagens indicarem que o benefício poderia acabar direcionado para um único grupo econômico.
Contratação de térmicas
Ainda que o incentivo para a construção de dutos não tenha passado na Lei da Capitalização da Eletrobras, o texto final obrigou o governo a contratar termelétricas em locais onde não há fornecimento de gás, como forma de prover a demanda para que a construção dos dutos se tornasse mais interessante economicamente. São 8 mil MW de termelétricas inflexíveis, com previsão de as operações se iniciarem entre 2026 e 2030. O leilão de capacidade foi realizado em setembro de 2022, mas não houve competição. Apenas a Região Norte recebeu ofertas e três empreendimentos foram contratados, somando capacidade de 754 MW. Não houve oferta para instalações no Maranhão e no Piauí, estados em que também havia previsão de contração de térmicas.
Segundo o diretor técnico-comercial da Abegás, Marcelo Mendonça, a política das térmicas inflexíveis poderia dar mais segurança ao sistema elétrico brasileiro ao colocar as termelétricas perto dos locais de maior demanda. “Estando mais próximos do centro de carga, poderíamos evitar esses blackouts. Os últimos blackouts que tivemos no país aconteceram justamente porque o elétron fica transitando de Norte a Sul do país. Além do mais, hoje a construção de gasoduto é mais barata do que a construção de linha de transmissão”, argumenta Mendonça.
Com o resultado aquém do esperado, governo e mercado replanejam a rota. Uma das ideias em andamento é reformular as exigências impostas na Lei da Eletrobras. Proposta do tipo consta do projeto de lei das Eólicas Offshore (PL nº 576/21), que aguarda votação no Senado. Na forma aprovada pela Câmara, o projeto aumenta o preço que as térmicas poderão cobrar pela energia de R$ 450 MWh para R$ 600 MWh. Em contrapartida, a potência total das térmicas cairia quase pela metade: de 8 mil MW para 4.250 MW. Adicionalmente, passaria a ser exigida a contratação de 4.900 GW de Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs). Além de permitir a venda do gás com preço mais elevado, a proposta prorroga benefícios para térmicas a carvão. A matéria está parada desde abril de 2024, uma vez que o novo incentivo aos combustíveis fósseis divide o governo e o setor elétrico.
Concentração de mercado
Hoje a Petrobras, por ser a maior operadora de blocos de petróleo, também detém o maior controle do gás natural. Em 2023, a estatal foi responsável por 91,93% do gás produzido no Brasil. Os 8% restantes se dividem por uma série de players com pequena participação no mercado. A segunda empresa da lista é responsável por 2% da produção. A ampliação do número de players no mercado do gás motivou uma série de iniciativas legais e infralegais. Em 2009, por exemplo, foi aprovada a primeira Lei do Gás Natural (Lei nº 11.909/09), que possibilitou que terceiros usem a infraestrutura dos gasodutos da Petrobras com o objetivo de atrair novos investidores para o setor. Além disso, a petroleira passou por uma série de desinvestimentos a partir de 2017, quando começou a vender os gasodutos de transporte no Sudeste, Norte e Nordeste. Ainda em 2019, a estatal se comprometeu junto ao Cade a vender o controle de metade da capacidade de refino que possuía, o equivalente a oito refinarias e os respectivos ativos de transporte. Nos anos seguintes, foi anunciada a venda da participação na Liquigás Distribuidora, 25% do capital da Transportadora Sulbrasileira de Gás S.A. (TSB), 51% da Gaspetro e do capital da Transportadora Brasileira Gasoduto Bolívia-Brasil (TBG). Em 2021, foi aprovada a Nova Lei do Gás (Lei nº 14.134/21), que mirava justamente na desconcentração do mercado. A nova lei permite o acesso por terceiros à infraestrutura de gás e possibilita que a injeção ou retirada dele sejam feitas por diferentes agentes de qualquer ponto do sistema de gasodutos. A lei proíbe a participação societária cruzada entre transportadoras e distribuidoras de gás canalizado com empresas de outros segmentos da cadeia produtiva.
A disputa continua
Outros esforços seguem sendo realizados para tentar diminuir o monopólio da Petrobras no segmento de gás. O senador Laércio Oliveira (PP-SE) incluiu um dispositivo para a diversificação do fornecimento de gás no PL nº 327/21, que institui o Programa de Aceleração da Transição Energética (Paten). O trecho, contudo, gerou grande reação da Petrobras.
A emenda estabelece a venda compulsória de gás natural (gas release) para empresas com participação superior a 50% no mercado, visando diminuir o monopólio da estatal. Também impede que tais empresas comprem ou importem de outros produtores. Os contratos vigentes que não tiveram o fornecimento iniciado serão encerrados, e aqueles que já tiveram o fornecimento iniciado deverão reduzir a quantidade em 50% até 12 meses após a publicação da lei.
“Isso limita a gestão e a comercialização de gás pela Petrobras e afeta a lógica econômica dos projetos em andamento, reduzindo a atratividade”, criticou, em discurso no plenário, o senador Rogério Carvalho (PT-SE), ao defender o papel da Petrobras em Sergipe. Segundo ele, investimentos da empresa no estado podem ser cancelados com a decisão. Laércio Oliveira classificou a fala como uma tentativa de chantagem em prol de Sergipe. “A companhia exerce o domínio do mercado maximizando os seus ganhos no setor de gás à custa de atrasar o desenvolvimento industrial do país”, argumentou. O posicionamento de Rogério Carvalho conflita também com falas do ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira (PSD), que recebeu Laércio Oliveira na semana passada e o parabenizou publicamente pela inclusão. “Estamos fortalecendo a industrialização dos estados produtores e a política de abertura do mercado. As medidas propostas pelo senador Laércio Oliveira estão em sintonia com as diretrizes que já adotamos no Gás Para Empregar”, declarou o ministro na ocasião.
Fonte: Cenários Políticos Setor Elétrico – dez 2024
Related Posts
ANP propõe debate sobre short haul e descontos para térmicas e estocagem em tarifas de gasodutos
Segundo reportagem da agência eixos, a ANP pretende aproveitar a consulta prévia sobre as tarifas de transporte de gás natural para abrir um debate amplo sobre o tema, incluindo a criação de tarifas...
Preço do gás natural é reduzido em Alagoas
O preço do Gás Natural Veicular (GNV) em Alagoas sofreu redução no mês de fevereiro. Segundo a Algás, a diminuição é de R$ 0,12. No entanto, o preço final passado ao consumidor depende dos postos de...