No meio jurídico, é comum ouvir que o Direito vem a reboque dos fatos – isto é, a realidade dita as regras que se tornam leis. No entanto, essa lógica não explica o momento atual que vive o setor de gás natural no Brasil. É o que afirma Ricardo Martinez, sócio da área de Petróleo, Gás e Offshore do Vieira Rezende.
Em sua avaliação, o país está tentando, de forma simultânea, organizar o mercado e regulamentar uma nova legislação.
Afinal, superada a batalha pela aprovação da Lei do Gás, que se arrastou por quase oito anos, chegou a hora do teste de fogo: regulamentar os dispositivos legais para implementar a concepção de um mercado pactuado por novas regras, estruturas, agentes e, sobretudo, expectativas.
“Tudo isso está sendo feito ao mesmo tempo para não incorrermos na velha armadilha do que vem primeiro: o mercado ou a disponibilidade do gás. A dicotomia é falsa, pois um depende do outro”, disse o advogado.
Para ele, o principal fator que irá estimular a criação do novo mercado é a necessidade do país em obter um combustível mais competitivo. Para isso funcionar, será fundamental o papel da ANP.
Essa visão encontra respaldo na interpretação de sua colega, Maria Carolina Priolli, advogada da área de Petróleo, Gás e Offshore do Vieira Rezende, para quem a agenda regulatória da ANP deve ganhar tração, já que a agência passará a arbitrar questões que não eram discutidas em razão do monopólio.
“A ANP não passará a regular algo que estivesse fora de sua competência. Mas, diante da maior complexidade de um mercado dinâmico e competitivo, a agência passará a tratar de questões que até então passavam ao largo do monopólio de fato da Petrobras”, avalia Priolli.
Dentre tais questões, destaca-se, por exemplo, o inciso VI do Artigo 7º da nova lei, que garante à ANP a prerrogativa de classificar os gasodutos de transporte. Questionado sobre o projeto de lei apresentado pelo deputado Ricardo Barros (PP-PR), apenas uma semana após a sanção da nova lei do gás, que procura criar uma definição legal para os gasodutos de transporte, com base na pressão máxima dos dutos, Martinez argumenta: “Esse PL mexe num vespeiro no qual nenhum político ousou fazer. Afinal, esse assunto será resolvido apenas por uma ótica constitucional”, afirmou.
Ainda em relação ao entendimento da nova lei acerca dos gasodutos de transporte, Maria Carolina Priolli afirma que não há uma sobreposição do que dispõe o inciso VII do Artigo 6º da Lei do Petróleo (9.478/1997), que define transporte como “movimentação de petróleo e seus derivados ou gás natural em meio ou percurso considerado de interesse geral”. Em sua análise, enquanto a Lei do Petróleo trata do tema de forma mais abrangente, a Lei do Gás o faz de forma mais específica.
Próximos passos
Apesar dos inúmeros desafios, os advogados veem um movimento profícuo por parte do Governo Federal e das empresas. Pelo lado do governo, afirmam, há um comprometimento permanente em desenvolver as questões regulatórias que ainda precisam ser equacionadas; já pela perspectiva das empresas, veem com otimismo a busca por aliar oferta e demanda, assim como novos projetos que ganham forma, como a recente decisão da Equinor de escoar o gás de Pão de Açúcar para o Terminal de Cabiúnas, em Macaé.
No meio disso tudo, entretanto, ainda existem pontos nevrálgicos como a harmonização das regulações estaduais com a lei federal, que constitui um dos pilares do novo mercado, e a regulamentação do acesso às infraestruturas essenciais, como rotas de escoamento e unidades de processamento.
Sobre as legislações estaduais, Ricardo Martinez aponta como exemplo o estado de São Paulo, onde a existência de distribuidoras privadas, com estruturas mais profissionais, estimulou decisões do órgão regulador, a Arsesp, que resultaram em um arcabouço mais moderno.
Maria Carolina, por sua vez, acredita que, diante da recente aprovação do manual de boas práticas regulatórias pelo Comitê de Monitoramento da Abertura do Mercado de Gás Natural (CMGN), haverá uma corrida dos estados pela adesão de práticas que podem os tornar mais competitivos. “Alguns estados sairão na frente pela atração dos investimentos, o que deve estimular os demais a buscarem mais competitividade através do aprimoramento da legislação”, afirma.
Por fim, ambos avaliam que até as regulações serem criadas e efetivadas, a concepção de um mercado aberto e dinâmico deve levar de cinco a dez anos. “É um trabalho incessante de longo prazo”, disse a advogada.
Fonte: EnergiaHoje
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