A nova proposta da Petrobras em relação aos preços do gás natural, de aumentar em até 50% o valor do insumo fornecido às distribuidoras, segue inadequada tendo em vista que a empresa ainda ocupa um papel dominante no mercado brasileiro, além de ter consequências muito preocupantes para a economia brasileira. Ciente de que dificilmente seus clientes terão alternativas ao combustível nos próximos meses, a empresa se dá o direito de maximizar preços independentemente das condições do mercado. Para a indústria vidreira, a situação é ainda mais grave: nesse setor, o gás natural é insubstituível mesmo num contexto de longo prazo.
Ao longo das últimas décadas, desde o início das operações do gasoduto Bolívia-Brasil, as promessas de que o gás passaria a ter uma oferta crescente e competitiva levaram o segmento a adotar fornos dependentes do combustível em suas plantas – tanto para a produção dos vidros planos usados na construção civil como para a fabricação de embalagens de alimentos, cosméticos e diversos outros produtos. Hoje essa dependência tornou-se irreversível, não só pelos investimentos realizados, como pela impossibilidade de se retomar o uso do óleo combustível pelos seus impactos ambientais. A tão propagada promessa de competitividade, no entanto, manteve-se como uma miragem e, pior, caminha agora para se transformar num pesadelo, ameaçando a própria sobrevivência dessa indústria.
A indústria não pode ser penalizada pela ineficiência da Petrobras quanto ao planejamento de suas operações
O fato é que, embora significativamente inferior à proposta inicial de reajustar o valor cobrado em até quatro vezes, o aumento de preço apresentado pela estatal continua injustificado e indica sérios problemas no planejamento de suas operações no segmento. As consequências dessas falhas não podem recair sobre os consumidores, que tampouco foram beneficiados nos momentos de preços baixos no mercado internacional, como os verificados no final da década passada.
Desde o início deste ano as condições dos reservatórios das hidrelétricas já ensejavam preocupação. Em janeiro – época em que normalmente o setor elétrico está enchendo as represas graças às chuvas de verão do Sudeste -, as usinas térmicas já demandavam mais de 44 milhões de m³ /dia de gás natural, volume muito superior à média, por exemplo, de todos os meses de 2019. Seria no mínimo razoável, portanto, a revisão dos modelos de contratação da parcela de gás importado destinado a tal atividade já naquele momento.
Nesse contexto, vale lembrar que, em anos típicos, com baixo consumo de gás para geração de energia no verão e aumento no inverno, a compra de gás natural liquefeito (GNL) no mercado spot (avulso) poderia fazer sentido, dada a menor demanda no Hemisfério Norte justamente nos meses do verão naquelas regiões. Negociações dessa envergadura requerem, no entanto, visão estratégica: qualquer mudança no comportamento do mercado pode exigir revisão na modelagem de contratação, com eventuais alterações para melhor controle dos riscos. E mais, sempre supondo uma correlação direta entre a produção de energia e a importação de GNL, tais riscos deveriam ser considerados pelo menos no Custo Variável Unitário (CVU) das térmicas ainda pertencentes à Petrobras, evitando prejuízos também nessa frente.
Os dados sugerem que a estratégia da empresa em relação aos baixos preços do gás natural no período pré-pandemia foi muito além da consideração das condições do mercado consumidor de gás. Tudo indica que a redução de custos foi usada como aspecto-chave de suas decisões relativas à produção nacional como um todo, combinando uma redução da oferta de gás produzido localmente, aumento da reinjeção nos poços produtores de petróleo – intensificando a recuperação de óleo, mais lucrativo -, e a expansão da importação via navios. Para se ter uma ideia, a reinjeção passou de uma média de 27,6 MM m3 /dia em 2017 para 67 MM m3 /dia em setembro último – num movimento que desperdiça um recurso que é de todos os brasileiros.
Os consumidores industriais, por sua vez, não viram se refletir em suas tarifas o benefício dos baixos preços do gás comprado lá fora – nem tiveram condições de acessar tais mercados diretamente, simplesmente porque a infraestrutura de regaseificação de GNL e de transporte ainda se encontrava sob controle da Petrobras.
Hoje, a empresa associa o reajuste a uma suposta necessidade de alinhamento dos preços praticados nos mercados de curto prazo da Ásia. Certamente essa derrocada no famoso choque de energia barata não está sendo observada nos valores cobrados intramuros, ou seja, das operações da própria estatal que usam gás natural. O consumidor, por outro lado, entrará em 2022 com esse aumento descontrolado, sem contar a perspectiva de alta média de mais de 20% das contas de energia elétrica por conta do aumento do custo de geração.
Diante do poder de mercado da Petrobras, é urgente uma ação do Cade. O órgão, cuja postura foi louvável no contexto de organização da transição da estatal para um regime de mercado, não pode ignorar que permanece a condição de monopólio de facto da empresa na área de gás, na medida em que ela ainda responde pela maior parte dos volumes negociados.
A indústria pode ser criticada por ter acreditado em promessas que hoje se mostram vãs no que se refere à oferta e aos custos do gás natural. Mas não pode ser penalizada pela ineficiência da Petrobras quanto ao planejamento de suas operações, muito menos por decisões que insistem em punir os consumidores. O fato é que a indústria considerou o combustível como uma alternativa em favor da competitividade, inclusive por seus efeitos colaterais positivos – como a geração de empregos e o crescimento econômico, além da redução de emissões de gases de efeito estufa comparada a outras opções fósseis.
A relevância desses ativos, ainda mais significativa num momento crítico como o que vivemos, não pode ser ignorada para que a estatal siga testando o mercado com práticas monopolistas e a máxima de lucros para seus acionistas e sociabilização dos prejuízos para todos os brasileiros.
Fonte: Valor Econômico / artigo – Lucien Belmonte – Abividro
Related Posts
Como o gás natural turbinou Roraima
Em artigo publicado no portal da agência eixos, o gerente Regulatório da Eneva, Lucas de Almeida Ribeiro, afirma que O único estado do Brasil ainda não integrado no Sistema Interligado Nacional (SIN)...
Segurança Energética de Baixo Carbono: Um pilar para o Futuro do RS
O portal da Sulgás publica artigo assinado pelo presidente da companhia, Marcelo Leite. Segundo ele, O ano de 2025 desponta como um marco para o desenvolvimento da infraestrutura energética no RS,...