Em artigo publicado no Valor, o professor Luís Eduardo Duque Dutra afirma que
No país o gás natural se revelou uma promessa jamais realizada, assim como o Brasil-potência, imagem cara à geração do pós-guerra, ou a América e o paraíso sobre a terra, para os descobridores europeus. As crenças se desfazem diante da realidade e a abundância da natureza não basta, em particular quando o governo não ajuda. Por exemplo, em 2019, anunciado com o “novo” mercado, o choque de oferta do gás foi negativo, inflacionário e estruturalmente traumático.
O oposto do pretendido, o que se agravou com o desmembramento da cadeia produtiva, o fatiamento dos ativos do setor e a desintegração forçada de uma indústria em rede. Seguindo Ronald Coase, o resultado era previsível: riscos e custos de transação crescentes. No exterior, a guerra da Ucrânia e a tumultuada retomada aumentaram a tensão comercial, o que se refletiu nos preços internacionais e nas importações.
Teria sido muito pior, se não fosse São Pedro, segundo a crendice popular. No ano passado, a chuva foi providencial ao recompor os reservatórios das hidrelétricas e, em consequência, demandar um menor despacho térmico e importações de gás. Mesmo assim, o preço no varejo (“citygate”) superou US$ 20 por milhão de Btu e, para o usuário final, antes da guerra, já era o gás encanado mais caro do mundo; nem japonês pagava tanto.
Não por acaso, o consumo está estagnado tem quase uma década. O aumento de oferta proveniente do pré-sal depende da construção de um gasoduto e uma UPGN, decidida em 2016 e que só será concluída em 2024, segundo a última previsão. Serão 18 milhões de m3 /dia adicionais; hoje, um volume suficiente para zerar as importações de GNL e quase por completo as compras da Bolívia.
As reservas gigantes do pré-sal são de gás associado ao petróleo, antes de tudo um insumo para extração do óleo e, muitas vezes, o teor em dióxido de carbono impede seu aproveitamento. Nem todo ele pode ser aproveitado, alegam as petroleiras. Uma ilustração é o campo de Peroba. A despeito de descoberto, foi devolvido à União em razão do conteúdo em CO2: quase 80% do seu gás. Ora, no restante do Brasil, não faltam, nem bacias sedimentares, nem oportunidades geológicas.
Por isso, indiferente ao desgoverno passado, o capital não ficou parado. Em terra, nos Solimões, na Amazônia e no Parnaíba, ou seja, no Norte e Meio-Norte, o país dispõe de importantes jazidas de gás não associado ao petróleo. Por estarem distantes e isoladas, o aproveitamento exigiu novos modelos de negócio e tecnologias inovadoras que podem ser replicadas em outros campos. À frente da iniciativa estão grupos econômicos brasileiros e privados.
Por sua vez, no portfólio da empresa estatal, a maior do país, o último projeto definido para o energético é o desenvolvimento do campo profundo de O & G na costa sergipana. A jazida tem um gás rico em óleo e o condensado retirado viabiliza a extração. O campo poderia escoar entre 12 e 16 milhões de m3 /d à malha nordestina a partir de 2027. A adição compensaria o prolongado declínio da produção nas bacias maduras da região e reduziria a maior dependência em relação à importação de GNL.
No longo prazo, considerando os rendimentos decrescentes do esforço exploratório no pré-sal, não é a região Sudeste, mas o Norte e Nordeste do país que guardam enorme potencial. No mar, a atenção se volta para as águas ultra profundas das cinco bacias sedimentares submersas da margem equatorial do Oceano Atlântico (uma área que vai do Estado do Amapá ao Rio Grande do Norte). Uma descoberta análoga a Liza, na Guiana, ou ao campo de Jubilee, em Gana, no Golfo da Guiné, do outro lado do oceano, não seria surpresa para os geólogos.
Em terra, o foco é o folhelho na extensa região conhecida como “Matopiba”, englobando os quatro Estados (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia). No Parnaíba, sabe-se que a formação se localiza a dois mil metros de profundidade, mas, até aqui, ignora-se por completo seu potencial. Vale assinalar a propósito que, depois do início do século, o gás não convencional fez ressuscitar a indústria química no Meio-Oeste dos Estados Unidos e, atualmente, é o responsável por revigorar a produção de O & G na vizinha Argentina, em Vaca Muerta.
Supondo que a janela da exploração por gás natural estará aberta ainda pelos próximos vinte anos, o sucesso na empreitada pelo seu aproveitamento depende do Estado, que deve agir de imediato. Política industrial, instrumentos de desenvolvimento regional e uma complexa engenharia financeira serão imprescindíveis para valorizar um recurso natural não renovável, raro e estratégico para a transição energética já em andamento.
No mar ou em terra, o potencial confirmado em gás natural terá o condão de acirrar a competição com o petróleo e seus derivados, além de criar oportunidades para agregar valor na sua transformação, ao mesmo tempo em que contribui decisivamente para a redução das emissões de dióxido de carbono e particulados.
Por fim, o mais importante, o compromisso em mitigar a mudança climática não exclui uma transição socialmente justa. Nas duas regiões mais pobres do país, sem ter gerado qualquer expectativa, ou falsa promessa, o gás natural pode estar no limiar de assumir um papel-chave – servir de ponte para uma economia sustentável, autossuficiente em energia, independentemente de qualquer recurso exportado e da volatilidade dos preços internacionais.
Fonte: Valor Econômico – Luís Eduardo Duque Dutra