Em artigo exclusivo para o portal 360, o fundador da Abar, Zevi Kann, afirma que o programa Gás Para Empregar chega em boa hora para quem sonha com o desenvolvimento do mercado de gás brasileiro. É realmente louvável a disposição de fomentar o setor manifestada pelo Ministério de Minas e Energia. E o foco é corretíssimo, pois parte do princípio que, somente criando meios para ampliar o aumento de oferta, é que o País terá condições de usar todo o potencial do gás natural como matéria-prima para as indústrias química e de fertilizantes no Brasil. A perspectiva de duplicar a oferta nacional de gás até o fim da década abre as portas para o desenvolvimento do mercado como um todo pelo viés do investimento, conforme afirma o ministro Alexandre Silveira (MME): “Vamos usar o gás como uma fonte energética estratégica e importante para garantir segurança energética e alimentar, reindustrializar o país e gerar emprego e renda para a população.”
Para que todo esse esforço não seja em vão, porém, há uma questão a ser examinada detidamente: a da competitividade. A indústria de gás brasileira, hoje, tem um gargalo no midstream. Há pelo menos 13 anos que não há investimentos significativos no elo de transporte de gás. A malha de gasodutos em operação é basicamente a mesma que foi construída pela Petrobras, quando a estatal ainda controlava todo o setor. A situação não mudou após a privatização de duas das principais transportadoras, a Nova Transportadora do Sudeste (NTS), para o fundo de gestão de ativos canadense Brookfield e outros acionistas minoritários, em abril de 2017, no governo Temer; e a Transportadora Associada de Gás (TAG), para a Engie e Fundo Canadense de Pensão – CDPQ, em junho de 2019, no governo Bolsonaro. Juntas, ambas controlam mais de 6.500 quilômetros da malha nacional, o que equivale a quase 70% de todos os gasodutos de transporte brasileiros. Mas é um fato que há uma assimetria entre os ganhos obtidos pela sociedade brasileira e os conquistados pelos novos controladores das duas transportadoras. Do lado da sociedade brasileira, a malha de transporte persiste com as mesmas dimensões de antes, ou seja, 9.500 km de extensão já existentes em 2010, dificultando a expansão e interiorização do gás canalizado no país.
Isso é frustrante. Sempre que ocorre um processo de desestatização, a premissa é de que a chegada de agentes privados, com ampla capacidade de investimentos, traga aportes vultosos e constantes não só na manutenção da operação, mas na ampliação da infraestrutura que permita o desenvolvimento do País, com geração de renda e empregos. Do lado das transportadoras, os resultados financeiros divulgados em balanço falam por si: em 2022, a NTS registrou uma receita líquida de R$ 6,8 bilhões, com EBITDA de R$ 6,3 bilhões e uma margem EBITDA de 92,6%. O lucro líquido foi de R$ 3,1 bilhões. Já a TAG obteve R$ 8,4 bilhões em receita líquida, com lucro líquido de R$ 2,2 bilhões. Ao receberem uma série de contratos legados com a Petrobras, remunerados com base em cláusulas que preveem o pagamento de 85% de ship or pay, e reajuste de inflação pelo IGP-M (com reajustes expressivos de 23,14%, 17,78% e 5,45%, em 2020, 2021 e 2022, respectivamente), as duas transportadoras receberam, somente em 2022, um total de R$ 15,2 bilhões para carregar gás natural para a Petrobras. Essas informações são apenas pano de fundo para o fato que importa: no curto prazo, não há nenhum cronograma para a revisão tarifária da NTS e TAG, mesmo sendo ativos construídos há muitos anos – na realidade existem gasodutos como o Gaspal e o Gasan, ambos no Sudeste, que foram implantados há pelo menos 30 anos e estão totalmente amortizados, o que deveria implicar numa redução de tarifa.
Mesmo assim, as duas transportadoras têm tarifas fixadas há muito tempo, ainda quando era a Petrobras que controlava as subsidiárias. A composição dessas tarifas é uma caixa preta. A própria ANP já admitiu não conhecer a fundo os critérios então utilizados para o estabelecimento dessa modelagem tarifária. Do ponto de vista conceitual, é fundamental compreender que um processo periódico de revisão tarifária tem tudo a ver com monopólios naturais, que é o caso do transporte de gás. Nos monopólios naturais, a tarifa representa a contrapartida pela operação da atividade. Ela visa permitir que o monopolista possa recuperar custos e despesas dispendidos durante a prestação de serviço, bem como pagar suas obrigações tributárias, e ainda obter uma remuneração correta para seus investimentos. Usando fórmulas paramétricas, uma boa regulação, portanto, tem o dever de estabelecer um ponto de equilíbrio financeiro e definir uma Receita Máxima Permitida, que leva em conta fatores como projeção de custos de Operação e Manutenção (O&M), despesas gerais administrativas, investimentos e reinvestimentos, depreciação dos ativos, previsão da capacidade de transporte e custo de capital.
A revisão tarifária, desse modo, consiste em uma avaliação técnica com foco no interesse do consumidor, que poderia se resumir a três itens: (i) operação eficiente, segura e confiável; (ii) investimentos para ampliar a rede e sua capacidade, levando os serviços para mais localidades e propiciando ganhos de escala; (iii) não menos importante, a modicidade tarifária, em benefício do consumidor e da competitividade da cadeia. É essa a lógica que determinou uma redução média, em 2022, de pelo menos 22% na revisão das tarifas da Transportadora Brasileira Gasoduto Bolívia-Brasil (TBG), transportadora ainda controlada pela Petrobras. E deve ser esse o racional que impõe a inclusão da revisão tarifária do setor de transporte de gás na agenda regulatória da ANP, cujo papel, também, é o de resguardar o interesse público em atividades de monopólio natural. É imperativo destacar que a obrigação de promover revisão tarifária está muito explícita em uma resolução da própria ANP publicada há quase 10 anos, a Resolução nº 15 (de 14/03/2014), que dispõe o seguinte em seu art. 19: “As Tarifas de Transporte aplicáveis à prestação do Serviço de Transporte Firme aprovadas pela ANP serão revisadas periodicamente a cada 5 (cinco) anos, a contar da Data de Início do Serviço de Transporte”, acrescentando, em seu § 1º, que “O processo de revisão periódica tem como objetivo a atualização e a adequação da metodologia e dos parâmetros utilizados para o cálculo da remuneração do investimento às condições macroeconômicas e de mercado prevalecentes no País”. Já a nova Lei do Gás (Lei nº 14.134, de 8/04/2021), estabelece, em seu artigo 9º, que ”A ANP, após a realização de consulta pública, estipulará a receita máxima permitida de transporte, bem como os critérios de reajuste, de revisão periódica e de revisão extraordinária, nos termos da regulação, e essa receita não será, em nenhuma hipótese, garantida pela União”, adicionando, em Parágrafo único, que “As tarifas de transporte de gás natural serão propostas pelo transportador e aprovadas pela ANP, após consulta pública, segundo critérios por ela previamente estabelecidos.”
Mesmo assim, pasmem, a ANP nunca avaliou as Receitas Máximas Permitidas da NTS e da TAG. Alega-se que as tarifas destas transportadoras ainda não passaram por esse processo por conta da manutenção de receitas garantidas pelo artigo 44 da já citada Lei nº 14.134. Mas essa é uma interpretação enviesada da Lei, que não se justifica, até mesmo pelo fato de que a TBG, ainda uma estatal, já fez sua revisão. Relembremos: o papel da regulação é zelar para que o exercício da condição de monopólio não ocorra em desfavor dos consumidores e da sociedade. E a sociedade está perdendo. A projeção de especialistas, vejam só, é que uma revisão tarifária das duas transportadoras poderia ocasionar tarifas de 30% a 40% mais baixas do que as atualmente praticadas, caso sejam obedecidos critérios similares aos utilizados no processo da TBG. A ineficiência tarifária se acentua pelo fato de que as operadoras obtêm a sua remuneração pelo carregamento total ainda que na atualidade elas transportem apenas 25% da sua capacidade. Protelar indefinidamente esse processo, desse modo, mantém o custo final do gás em patamares caros para o consumidor. Pior: algumas vozes poderiam pressupor que a conta dessas privatizações talvez esteja sendo paga – e, nessa hipótese, indevidamente paga –, com o dinheiro do consumidor. Se nada disso mudar, o programa Gás Para Empregar não irá ter os avanços esperados. Urge, portanto, que a ANP abra essa discussão e agende a revisão tarifária das transportadoras, possibilitando que o gás natural possa se converter em um efetivo vetor da reindustrialização brasileira.
Fonte: Poder 360
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