Nesta semana, a estatal boliviana YPFB – responsável pela comercialização de gás e petróleo da Bolívia – anunciou o primeiro acordo para transportar o gás de Vaca Muerta, na Argentina, para o Brasil por meio do Gasbol (Gasoduto Bolívia-Brasil). Outros acordos devem ser firmados ainda neste verão, já que a empresa espera movimentar inicialmente até 4 milhões de m3/dia da Argentina para o Brasil, podendo ampliar esse volume para 10 milhões de m3/dia nos róximos anos. Por um lado, a medida é uma forma de equilibrar a escassez de gás natural no curto prazo – muito por conta da própria queda de produção da estatal boliviana – e também trazer maior competitividade ao gás natural no Brasil, ainda muito caro num mercado concentrado. Por outro, levanta dúvidas sobre o impacto dessa estratégia no longo prazo, quando pensamos na indústria de hidrogênio de baixo carbono no Brasil e no caminho rumo a uma matriz energética mais limpa e independente. Isso porque o gás e hidrogênio muitas vezes devem competir pelo mesmo mercado. O hidrogênio de baixo carbono é um substituto óbvio do hidrogênio cinza, produzido a partir do gás natural sem captura de carbono, que hoje é utilizado em larga escala principalmente em refinarias. Além de ser substituto direto do gás, considerando as semelhanças em termos de propriedades físicas e químicas, e a necessidade de alcançarmos as metas do Acordo de Paris. Quando queimado, ao contrário do gás natural, o hidrogênio não libera dióxido de carbono.
Para além da questão ambiental, é importante trazer o dinheiro para o debate. Em especial, o dinheiro público. Ao mesmo tempo em que o Brasil tenta driblar as suas restrições orçamentárias e regulamentar incentivos à indústria de hidrogênio de baixo carbono, caso queira trazer mais gás da Argentina, o país pode ser umas das fontes de centenas de milhões de dólares em financiamento para expansão da infraestrutura de gasodutos, que devem incluir recursos do BNDES. Um cálculo que não é fácil, principalmente em um momento de transição energética. Políticas públicas precisam endereçar suas prioridades, que ainda não parecem claras. Nesse momento, além de incentivos para hidrogênio e mandatos para combustíveis verdes que usam hidrogênio, como o SAF, o Congresso também discute a contratação de térmicas e incentivos para produção de fertilizantes a partir do gás natural.
Seja com gás ou hidrogênio, no fim do dia o que se deseja é a industrialização do país. A promessa renovada do gás barato traz de volta a esperança à indústria brasileira de redução dos seus custos e aumento da produtividade. Apesar de não haver garantia de que o gás argentino será muito mais competitivo em termos de preço, os contratos de curto prazo e o mix com o GNL importado dos Estados Unidos, o gás boliviano e o gás da Petrobras podem trazer mais dinamismo ao mercado brasileiro. A promessa de um hidrogênio de baixo carbono competitivo é ainda mais distante. Os projetos de larga escala ainda precisam sair do papel. Nenhum até agora teve a decisão final do investimento. Potenciais produtores aguardam sinalização de demanda, enquanto potenciais primeiras indústrias consumidoras, como refinarias e siderúrgicas, aguardam a sinalização de oferta. Em certa medida, a história do gás se repete no hidrogênio.
Uma grande diferença é a possibilidade de autossuficiência, no caso do hidrogênio. A abundância de recursos naturais, como energia solar, eólica e hidrelétrica, coloca o Brasil em condições privilegiadas para produzir um dos hidrogênios verdes mais baratos do mundo a partir da próxima década.
Além disso, a vasta produção agrícola também oferece uma rota de produção de hidrogênio a partir de biomassa com enorme potencial competitivo. O Brasil teria capacidade tanto de exportar hidrogênio renovável para mercados que não possuem condição de produzir domesticamente este energético, quanto de utilizar essa oportunidade para impulsionar a industrialização verde no país. Além de refinarias e siderúrgicas, capazes de utilizar o hidrogênio renovável, em substituição ao cinza, para produção de combustíveis e aço verde, o país ainda possui uma gigantesca lacuna para produção de fertilizantes. Aliás, fertilizantes que hoje são mais de 80% oriundos da importação, porque o preço do gás natural no Brasil é um impeditivo para a indústria nacional. É importante também colocar na conta a taxação de carbono. Se os mecanismos de tributação a produtos com alta intensidade de carbono avançarem, como o CBAM, o uso do gás natural no longo prazo pode ser menos competitivo que o uso de hidrogênio verde, por exemplo. O gás natural, ainda que menos poluente que o carvão, continua sendo uma fonte fóssil que contribui para o aquecimento global.
Outra perspectiva é considerar o gás natural como uma transição para o hidrogênio de baixo carbono. Empresas como a Vale já manifestaram intenção de pular diretamente para o uso do hidrogênio verde, em vez de transitar pelo gás natural, em mega hubs de produção de aço verde no Brasil. Contudo, recentemente a mesma empresa firmou contratos no mercado livre de gás, onde espera alcançar ganhos de competitividade para atender suas necessidades atuais. A Petrobras já admitiu que vem conversando com siderúrgicas um modelo de negócio que começaria com fornecimento de gás natural e depois partiria para hidrogênio, inclusive produzido a partir do gás argentino com captura e armazenamento de carbono (CCS). Já a Atlas Agro desenvolve uma planta de larga escala de produção de fertilizantes a partir de hidrogênio verde em Uberaba, Minas Gerais. O projeto nem considerou o uso do gás natural, que nunca chegou na região apesar das muitas promessas de construção de um gasoduto até a cidade. Falando em gasodutos, as limitações de transporte e distribuição interna de gás natural são uma realidade. E a construção de novas infraestruturas poderiam levar ao risco de criação de ativos encalhados, com gasodutos obsoletos diante da crescente viabilidade do hidrogênio. O que leva a um outro ponto de atenção: a necessidade de se pensar em gasodutos multi-moléculas, capazes de movimentar gás natural, hidrogênio e até carbono para as atividades de CCS. Hoje, pesquisas indicam que uma mistura de até 20% de hidrogênio ao gás natural pode ser viável sem causar danos aos dutos existentes.
Outra vantagem do hidrogênio é a possibilidade de produção descentralizada, em especial a partir da biomassa, sem que haja necessidade de grandes infraestruturas dedicadas. Embora o gás natural, incluindo o de Vaca Muerta, possa ter um papel transitório na industrialização do Brasil, encará-lo como uma solução de longo prazo pode ser pouco vantajoso para um país com o potencial de autossuficiência para o hidrogênio renovável – que pode trazer grandes benefícios econômicos, ambientais e geopolíticos.
Fonte: Eixos
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