Em artigo publicado no Valor, Rosane Menezes e Lucas Noura Guimarães, respectivamente, sócia da área de Infraestrutura e advogado da área de energia do Madrona Advogados, afirmam que desde 1997 discute-se a ideia de criar um mercado de gás natural no Brasil.
Desde 1997 discute-se a ideia de criar um mercado de gás natural no Brasil. Nos últimos anos a discussão ganhou força, com a elaboração da nova Lei do Gás (que substituirá a Lei nº 11.909/09), o lançamento do Programa Gás para Crescer e a decisão da Petrobrás em vender seus ativos de gás natural.
Recentemente, o governo deu mostras de suas intenções em acelerar a regulamentação e expansão do mercado de gás natural brasileiro. Exemplo tem-se com a recente publicação do Decreto 9.616/18, que ampliou o acesso de terceiros às infraestruturas de escoamento da produção e processamento de gás natural e dos terminais de GNL. Além disso, busca-se a edição de uma medida provisória alterando, de concessão para autorização, o regime de construção e operação de gasodutos, bem como a aprovação, urgente, do PL 10.985/18, o qual, além de trazer solução para o GSF, cria um fundo para a construção de gasodutos (Brasduto).
No que diz respeito ao setor elétrico, pululam estudos demonstrando os benefícios e necessidade de uma maior inserção do gás natural na produção de eletricidade. Os argumentos em prol da regulamentação da exploração deste insumo e do aumento de sua presença no setor variam desde a necessidade de quebra do monopólio da Petrobras – presente ao longo de toda cadeia da indústria gasífera -, até a alegada necessidade de ter-se geração de base (“baseload generation”) para contrapor a intermitência das fontes solar e eólica.
Inclusive, parte do governo defende a viabilidade de realização de um leilão exclusivo para gás natural e específico para a Região Nordeste, nada obstante o Sistema Interligado Nacional, em sua origem, não ter sido concebido para leilões regionais.
De fato, o aumento da participação do gás natural na geração de eletricidade pode apresentar vantagens. Em primeiro
lugar, contribuiria para a diversificação da matriz elétrica brasileira, tão importante em tempos de mudanças climáticas.
Em segundo lugar, contribuiria para o estabelecimento de uma matriz mais limpa e mais barata, na medida em que usinas a gás viessem a substituir geração de eletricidade mais cara e poluente a partir dos outros combustíveis fósseis. Por fim haveria o desenvolvimento de uma nova indústria, com geração de empregos e renda, e o alinhamento com a política internacional de investimentos e financiamentos. Nesse sentido, a inserção do gás natural no setor elétrico é bem-vinda.
Contudo, alguns fatos objetivos e outros argumentos técnicos precisam ser trazidos à reflexão, de forma a evitar que o discurso em prol do gás natural se torne mero fetiche e se justifique pelas razões erradas.
Um ponto inicial diz respeito a qual fonte estaria sendo substituída, à medida que as usinas a gás entram em operação. Pelo Balanço Energético Nacional da EPE, publicado anualmente, em 2016, 68,1% da eletricidade ofertada adveio da fonte hidráulica, 5,4% da fonte eólica e 9,1% de gás natural. No recém-publicado Balanço de 2018, referente a 2017, consta que a oferta de eletricidade a partir da fonte hidráulica recuou para 65,2%.
Gás natural não vem substituindo geração térmica mais poluente, mas a hidrelétrica, limpa e barata Este recuo foi igualmente apropriado pela expansão da fonte eólica e do gás natural: 1,4% de crescimento para cada fonte.
Nestes dois anos, a oferta de eletricidade a partir dos demais combustíveis fósseis (carvão, petróleo e seus derivados) manteve-se a mesma: 6,6% em 2016 e em 2017. Portanto, verifica-se que a inserção do gás natural não vem substituindo geração térmica mais poluente, mas sim geração hidrelétrica, limpa e barata.
Corroboram esses dados o fato que encontram-se em fase de implantação, segundo dados da Aneel, 3,1 GW de usinas movidas a gás natural, enquanto eólica e solar juntas somam 2,5 GW. Carece de sentido a substituição de geração hidrelétrica, firme e limpa, por usinas a gás, enquanto, ao mesmo tempo, esforço algum é feito para descomissionar usinas térmicas movidas a combustíveis fósseis.
Sob o ponto de vista técnico-econômico, geração térmica a gás natural não oferece a melhor nem a única solução para funcionar como back-up da geração intermitente das fontes eólica e solar. Sequer há consenso quanto à indispensabilidade de geração de base para atendimento à carga. Por outro lado, tampouco há consenso quanto à suposta incapacidade das próprias fontes renováveis para atuarem no suprimento de base da carga.
Uma miríade de alternativas desponta como solução para fazer frente à intermitência, o que inclui: “repowering” de usinas eólicas, por meio da substituição das instalações existentes por mastros mais altas, pás maiores e motores mais potentes, aumentando o fator de capacidade; desenvolvimento dos parques eólicos offshore, cujos fatores de capacidade são mais altos, pois captam ventos mais constantes e fortes; baterias e carros elétricos como fontes de armazenamento de eletricidade, para quando o vento parar de soprar e o Sol parar de brilhar; aumento da participação de renováveis não intermitentes no mix energético, como biomassa e PCHs; aprimoramento das tecnologias usadas em meteorologia, para prever com a antecedência necessária a passagem de nuvens sobre determinada fazenda solar ou a ausência de ventos nos parques eólicos.
De forma indireta, um aumento da malha de transmissão diminui os requisitos de flexibilidade do sistema, oferece mais possibilidades para despacho e otimiza a operação do sistema, diminuindo os riscos associados à intermitência.
Do lado da demanda, há todo um campo de tecnologias ainda muito pouco explorado, inclusive para atender um sistema com grandes quantidades de fontes intermitentes de eletricidade. Tais medidas incluem aumento da eficiência energética; programas de resposta da demanda e uso de medidores inteligentes, com o intuito de flexibilizar também a demanda, suavizando os picos de consumo.
Não se justificando as térmicas a gás como geração de carga de base (inflexíveis), torna-se economicamente inviável ter-se térmicas a gás flexíveis, em razão de sua incompatibilidade com a extração inflexível de gás da camada do pré-sal, bem como com os preços dos contratos de gás de curto prazo, os quais seriam liquidados no mercado spot, mais caro.
Portanto, o aumento da inserção do gás natural na matriz elétrica brasileira é bem-vinda, porém se justifica apenas na medida em que substitui geração térmica mais cara e poluente. Os esforços não deveriam se concentrar em apresentar o gás natural como solução para a intermitência energética, mas sim em como gerenciar a inserção de quantidades cada vez maiores de fontes renováveis de energia. Sustentar o discurso do gás natural com base na suposta “ameaça da intermitência” retarda o salto disruptivo que o setor elétrico brasileiro precisa realizar.
Fonte: Valor Econômico – artigo Rosane Menezes e Lucas Noura Guimarães