Em artigo publicado no Valor, a advogada Daniela Santos, e o economista Edmar Luiz Fagundes de Almeida, afirma que as tuais discussões relacionadas ao PL do Gás (PL 4.476/20), no Senado, têm como pano de fundo uma antiga e recorrente controvérsia sobre a competência dos Estados e da União no que tange à movimentação e comercialização do gás natural.
As atuais discussões relacionadas ao PL do Gás (PL 4.476/20), no Senado, têm como pano de fundo uma antiga e recorrente controvérsia sobre a competência dos Estados e da União no que tange à movimentação e comercialização do gás natural.
Como se sabe, enquanto o artigo 177 da Constituição Federal determina que constitui monopólio da União “o transporte, por meio de conduto, de gás natural”, o § 2º do artigo 25 do mesmo texto estabelece o monopólio estadual sobre “os serviços locais de gás canalizado, na forma da lei, vedada a edição de medida provisória para a sua regulamentação”. Portanto, há competência constitucional da União e dos Estados em relação à movimentação do insumo.
A legislação infraconstitucional, especialmente as Leis do Petróleo (nº 9.478/97) e do Gás Natural (Lei nº 11.909/09), deixam claro que a competência da União é mais ampla – envolvendo a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e gás natural, o seu tratamento nas Unidades de Processamento de Gás Natural (UPGN), o transporte por meio de duto e a granel, o carregamento, a estocagem subterrânea, o acondicionamento, a liquefação, a regaseificação, a comercialização no mercado atacadista envolvendo produtores, distribuidoras, comercializadores, e grandes consumidores livres; e, finalmente, a importação e a exportação de gás natural – do que a competência dos Estados, pontual e excepcional para a distribuição do insumo.
Mas o que compreende a distribuição de gás natural? Segundo a legislação vigente, é a movimentação do insumo desde que atendidas três condicionantes, de forma concomitante, a saber: 1- a entrega de gás natural ao consumidor final; 2- a movimentação por meio de dutos e 3- a movimentação nos limites do próprio Estado.
Ocorre que esta caracterização da atividade de distribuição de gás vem sendo sistematicamente questionada por defensores de uma visão mais abrangente do conceito, que inclui o monopólio sobre a atividade da comercialização do gás natural.
Entretanto, a comercialização do gás ao consumidor final é um serviço acessório à atividade de distribuição, no caso em que a concessão para distribuição atribui uma exclusividade para a atividade de comercialização ao consumidor final. E tanto é assim, que diversos contratos estaduais reservaram, durante um período determinado, a exclusividade da atividade de comercialização pela distribuidora local e, findo tal período, previram sua liberação.
Assim, uma vez que o poder concedente estadual defina a possibilidade da liberalização da comercialização aos usuários finais, tal medida passa a fazer parte do mercado atacadista e, portanto, de competência federal, uma vez que os consumidores finais livres necessariamente deverão transacionar gás com comercializadores autorizados e regulados pela ANP.
Prática contrária não apenas compromete a eficácia e eficiência da regulação federal – bem como da atual proposta de abertura e introdução da concorrência no mercado de gás – como pode resultar na substituição do monopólio da Petrobras por monopólios estaduais ou regionais no mercado de gás, o que não é desejável para o país.
De fato, não são raras as disputas entre distribuidoras e empresas que atuam em outros segmentos da cadeia que atrapalham o desenvolvimento do setor. Podemos citar vários exemplos disso: disputa entre transportadoras e distribuidoras para desenvolvimento de projetos de gasodutos, por conta da classificação de dutos; divergência de interpretação sobre o escopo da atividade de comercialização no plano estadual – alguns governos estaduais atuam como instâncias autorizadoras da atividade de comercialização para consumidores; potencial competição entre fornecedores de gás natural e de gás a granel, considerando o (equivocado) entendimento de que a simples comercialização do gás na área concedida infringiria o suposto monopólio estadual sobre a comercialização (mesmo havendo regulação específica da ANP sobre o tema) e, finalmente, a definição de usuário final de gás desconsiderando a etapa da cadeia na qual ocorra o consumo do gás.
O PL do Gás se propõe a corrigir tais distorções, ou, pelo menos sinalizar uma definição clara sobre o tema, ao esclarecer, 1- o que será considerado como gasoduto de transporte, sem fazer menção ao §2º do art. 25 da Constituição (sem, contudo, flexibilizar o monopólio constitucional da distribuição); 2- ao confirmar a competência exclusiva dos Estados para definir os conceitos de consumidores cativos e livres, reforçando a necessidade de harmonização das legislações federal e estaduais atinentes à indústria de gás natural; 3- ao definir as atividades econômicas de transporte de gás natural por meio de condutos e de importação e exportação de gás natural; 4- ao impedir que transportadores exerçam funções na atividade de comercialização de gás natural e; 5-ao definir o mercado atacadista através da criação do Mercado Organizado de Gás.
Ao esclarecer tais pontos fundamentais sobre a comercialização do gás natural, o PL contribui para reduzir a margem para interpretações heterodoxas sobre o escopo da atividade de distribuição de gás canalizado, as quais limitam a concorrência e o dinamismo no setor.
Em conclusão, a despeito da oferta do insumo no país, restou claro que a opção pela restrição à comercialização de gás natural não levou à expansão desejada do mercado de gás natural. O Novo Mercado, lançado pelo governo federal, pretende mudar tal lógica, abrindo o mercado com dinamismo e competitividade.
Nesta medida, enquanto o alcance da atividade de distribuição não for definitiva e adequadamente compreendido e assimilado por todos, os conflitos seguirão atrapalhando a modernização e desenvolvimento do mercado de gás no Brasil. Por isso, a imediata aprovação do PL do Gás no Senado representa passo fundamental para garantir o resultado que se espera para o país.
Fonte: Valor Econômico / artigo
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