O escrutínio das tarifas de transporte de gás natural está na agenda prioritária do Conselho de Usuários de gasodutos. Criado em 2023 para monitorar o desempenho, eficiência operacional e investimentos dos transportadores, o CdU quer antecipar o debate sobre a Base Regulatória de Ativos (BRA) da NTS e da TAG – que passarão, em 2025, pela primeira vez, por uma revisão tarifária. O Conselho voltou a cobrar este mês, da ANP, o acesso às informações sobre a BRA dos contratos legados – aqueles assinados com a Petrobras antes da privatização das transportadoras e que constituem, hoje, a base da remuneração da TAG e NTS. O pedido se arrasta desde 2022, sem uma posição oficial do regulador. Os usuários (produtores, comercializadores, consumidores, distribuidoras, termelétricas) alegam que é preciso se preparar com antecedência para a discussão, prevista para o ano que vem, dada a complexidade do processo. Lembram que a revisão da BRA da TBG, em 2020, foi atropelada e querem, desde já, passar a lupa nos números. Já as transportadoras pedem respeito aos ritos processuais e aos contratos — que compõem, inclusive, parte da estruturação financeira que viabilizou a privatização da TAG e NTS.
Os usuários querem checar tudo o que já foi amortizado, depreciado, e que possa contribuir para reduzir as tarifas – hoje o custo do transporte no Brasil é, na média, da ordem de US$ 2 o milhão de BTU, de acordo com o Ministério de Minas e Energia. O ambiente político joga a favor. O diagnóstico do governo, após conclusão do grupo de trabalho do Gás para Empregar, é de que o custo da infraestrutura no Brasil é caro. O ministro Alexandre Silveira prometeu “regulação firme” para baixar os custos, em especial no escoamento e processamento. Mas o transporte (10% do custo final do gás para o consumidor) também se insere nesse contexto. A ANP tem tudo na mão para endereçar [a questão dos custos do transporte]. Colocar esse assunto em voga dentro do Gás para Empregar também ajuda a pôr essa problemática no centro dessas discussões”, afirma o vice-presidente do Conselho de Usuários, Adrianno Lorenzon, da Abrace.
Os investimentos da TAG e NTS na expansão da malha de gasodutos remontam, em sua maior parte, aos anos 2000, quando ambas as companhias ainda pertenciam à Petrobras. Dez anos após a Resolução 15/2014 ter estabelecido o modelo de revisões tarifárias quinquenais para o transporte de gás, TAG e NTS nunca passaram por uma revisão tarifária — processo comum nas indústrias de rede, como a distribuição de gás canalizado e eletricidade e a transmissão de energia. Com o vencimento dos primeiros contratos legados entre a Petrobras e as transportadoras, em dezembro de 2025, a ANP viu uma janela para revisão tarifária da TAG e NTS – e de suas respectivas bases de ativos. Os usuários aguardam com expectativa os efeitos da amortização dos investimentos sobre as tarifas. A BRA representa o conjunto de ativos diretamente relacionados à atividade de transporte (o gasoduto em si, estações de compressão e pontos de entrega, por exemplo). A valoração dessa base é um dos componentes no cálculo da receita máxima permitida ao qual as transportadoras têm direito a receber e é um dos primeiros passos de um processo de revisão tarifária. A Base Regulatória de Ativos só pode ser considerada no cálculo da tarifa enquanto não ocorrer a depreciação total do ativo. Caso esses investimentos já tenham sido pagos, a tarifa considera apenas a prestação do serviço em si. Aliás, a revisão tarifária da TAG e NTS em 2025 marcará uma mudança importante na remuneração das transportadoras. Até então, os contratos legados eram, essencialmente, a principal fonte das receitas das companhias. Mas a partir do ciclo tarifário que se inicia em 2026, as tarifas também passam a incorporar a projeção de investimentos futuros, dentre outros aspectos (como os contratos legados que permanecerão vigentes e os investimentos, custos e despesas realizados para abertura de mercado e/ou confiabilidade do sistema e que ainda não foram recuperados). A Nova Lei do Gás atribuiu à ANP a competência de definir a receita máxima permitida (com base nas propostas das transportadoras), bem como os critérios de reajuste, revisão periódica e de revisão extraordinária.
As transportadoras defendem que o rito processual seja seguido em seu próprio tempo: “Essa discussão tem data e tem hora marcada para acontecer, à luz do respeito aos contratos”, comentou o diretor Comercial e Regulatório da NTS, Helder Ferraz. A TAG reforçou, em nota, que seguir os procedimentos dentro do “prazo adequado” contribui para para a “boa pedagogia e discussão entre os agentes, a fim do compartilhamento, de maneira transparente, da metodologia de cálculo aplicada à proposta tarifária”. A expectativa no mercado é que a consulta pública da revisão tarifária da TAG e NTS seja lançada em meados de 2025. Para os usuários, a discussão já está atrasada — a valoração da BRA é apenas uma das etapas do processo de revisão tarifária, que também passa pela discussão sobre a metodologia do WACC [o custo médio ponderado de capital] e o plano de negócios, com os investimentos e custos operacionais apresentados pelas transportadoras. E nessa complexidade de assuntos, é natural que haja divergências entre os agentes sobre a remuneração do transporte. “Um ano é muito pouco para fazer essas análises. Nós, como Conselho de Usuários, deveríamos poder ter mais tempo para nos debruçarmos sobre os dados, para pedir mais dados etc. Porque se é para simplesmente participarmos durante a consulta pública, então, na verdade, não estamos fazendo o trabalho de Conselho de Usuários”, comenta a presidente do Conselho, Sylvie D’Apote, do IBP.
Os usuários pedem acesso à memória de cálculo das tarifas de todos os contratos legados – inclusive a abertura dos dados daqueles contratos que vencem só a partir do fim da década. Querem uma transparência mais ampla sobre o assunto. As transportadoras, por sua vez, defendem que a revisão da BRA é gradual: deve ser feita conforme os contratos legados forem vencendo. A TAG tem quatro contratos legados com a Petrobras, com vencimentos diferentes: Malha Nordeste (2025); Urucu-Coari-Manaus (2030); Pilar-Ipojuca (2031); e Sistema Gasene (2033). A NTS tem outros cinco contratos: Malha Sudeste I (2025); Paulínia–Jacutinga (2030); Gasduc III (2030); Malha Sudeste II (2031) e Gastau (2031). Para 2025, portanto, seriam discutidos somente os casos dos ativos contidos na Malha Nordeste e Malha Sudeste I. No mercado, contudo, agentes têm se posicionado a favor de uma revisão geral e antecipada da BRA das transportadoras — e que os contratos legados não são justificativa para impedir a atualização dos ativos operacionais. É o caso da Abpip (produtores independentes), por exemplo, que na consulta pública sobre o ajuste nas tarifas da NTS, no início do ano, defendeu que a revisão da base de ativos aconteça “o quanto antes”. Abegás (distribuidoras) e Fiesp questionaram, por sua vez, a demora da ANP em promover as revisões tarifárias no setor. Ao defender a transparência sobre os dados, o Conselho de Usuários fundamenta o pedido na Lei de Acesso à informação (divulgação de dados de interesse público independem de solicitação e é dever do Estado garantir direito de acesso de forma objetiva, ágil e com transparência). “O que a gente está discutindo agora é simplesmente ter acesso a um número que deveria ser de domínio público. É um ponto de origem: como que aquela receita foi definida lá atrás? Isso vai ser base para a revisão tarifária, para a definição da base de ativos da revisão tarifária”, argumenta Lorenzon. A Resolução ANP nº 15/2014, sob revisão, também estabelece que o acompanhamento da Base Regulatória de Ativos dos gasodutos de transporte deve ser publicado pela agência, obedecendo aos princípios da publicidade e transparência. A própria Petrobras, a contratante original, já se posicionou a favor da liberação do acesso aos dados em questão, mesmo tendo os contratos legados cláusulas de confidencialidade. Alega que o transporte de gás é um segmento de monopólio natural, com retorno regulado, sendo legítimo que os agentes da indústria tenham acesso a todo detalhamento da composição do custo das tarifas de transporte. TAG e NTS alegam junto à ANP, por sua vez, que os contratos legados são instrumentos jurídicos perfeitos, negociados, celebrados e submetidos ao regulador conforme arcabouço legal vigente à época e protegidos pelo princípio constitucional da segurança jurídica. Citam ainda que os direitos (receitas) dos transportadores decorrentes dos contratos legados vigentes foram preservados pela Nova Lei do Gás – essas receitas influenciaram a valorização das empresas, na ocasião da privatização das companhias. E que os ativos das transportadoras foram todos autorizados pela ANP depois de uma avaliação por parte da agência reguladora, sem objeções, da relação de bens e instalações abrangidos por cada ativo objeto dos contratos legados à época, de acordo com seus respectivos valores contábeis.
Antes da revisão tarifária das transportadoras em 2025, a ANP espera avançar este ano com a revisão dos critérios para cálculo das tarifas e receitas dos transportadores. A Resolução 15/2014, que trata do assunto, é anterior à Nova Lei do Gás e ainda reflete a estrutura de um mercado vertical. As tarifas da TAG e NTS e a definição dos critérios das tarifas de transporte correm de forma independente, mas são assuntos que se entrelaçam. A revisão da RANP 15/2014 influencia diretamente o modelo de remuneração das transportadoras e, portanto, os investimentos no setor – e, consequentemente, o plano de negócios apresentado pelas empresas na revisão tarifária. Concluir a regulamentação antes da revisão tarifária da NTS e TAG é um cronograma desafiador – sobretudo diante do histórico de atrasos na execução da agenda da ANP. Ferraz, da NTS, conta que as transportadoras, hoje, têm dificuldades de aprovar novos investimentos diante das incertezas regulatórias – como, por exemplo, qual será a WACC a partir de 2026. Também falta saber, por exemplo, se o modelo de remuneração será ex-ante ou ex-post os investimentos. “Nós no midstream não temos qualquer controle sobre a demanda e não temos instrumentos para mitigar ou eliminar esse risco. Então esse é o grande tema que precisamos evoluir do ponto de vista regulatório”. “A regulamentação precisa ser modernizada e ajustada ao novo desenho de mercado, que é um mercado unbundling. Antigamente não havia esse problema que a Petrobras, como estava em qualquer elo da cadeia, ela geria esse risco”, completou.
Fonte: Epbr