A nova regulamentação da Lei do Gás ressuscitou a figura da tarifa postal uniforme – que ao longo dos últimos anos deu lugar ao modelo de entrada e saída nos contratos de serviço de transporte no mercado brasileiro. O decreto 12.153/2024 reintroduziu o conceito da tarifa postal no capítulo que reforça a competência da ANP em adotar medidas transitórias. Diz que, durante o período em que não forem concluídas as ações regulatórias referentes às tarifas de transporte, a ANP adotará preferencialmente a modalidade postal para as tarifas de transporte. E define, então, a tarifa postal como aquela tarifa uniforme cobrada de todos os carregadores do sistema, independentemente da distância, de sua localização na malha de gasodutos e do seu operador. Segue mantida a possibilidade de contratar a injeção e a retirada de gás no sistema de forma independente, como preconiza o modelo de entrada e saída. A agência eixos apurou que o novo dispositivo ainda está sendo digerido pelas transportadoras e pela própria ANP – a quem cabe a palavra final sobre os critérios de cálculo das tarifas. Há, porém, um certo ceticismo, entre as partes envolvidas, sobre a viabilidade da mudança de rota – sobretudo a curto prazo, já que os preparativos para os próximos processos de oferta de capacidade anual já estão em andamento. A nota técnica que trata das propostas tarifárias para a janela de contratação do fim de ano está no forno – e seguindo a metodologia atual. Adotar a tarifa postal, no meio desse caminho, pode atrasar os processos.
O uso das tarifas postais uniformes foi uma das propostas do Comitê Técnico 2 (liderado pelo MME), do Grupo de Trabalho do Gás para Empregar, para vigorar enquanto não forem definidas regras claras para as tarifas locacionais. O documento cita que a medida é essencial para mitigar as diferenças de custos de transporte entre as diferentes regiões do país. Esta é a principal linha de defesa do governo, que buscou amparo na Resolução CNPE 03/2022. Hoje, as tarifas de transporte mais baratas, para a saída do gás do sistema, são as do RJ (NTS e TAG), SP e MS (na malha da TBG). Um eventual retorno da tarifa postal uniforme teria como efeito, portanto, a perda desse diferencial para esses estados – dentre eles os dois principais centros de consumo do país. A medida, por outro lado, tende a beneficiar os carregadores do sistema TAG, no ES e Nordeste – malha que combina ativos mais novos, ainda não amortizados, e o menor mercado consumidor. Os extremos do sistema interligado (CE e RN numa ponta e RS na outra) possuem hoje as maiores tarifas de saída. A nota técnica do Ministério de Minas e Energia que subsidiou a elaboração do decreto 12.153/2024 cita, ainda, que a Petrobras, em seus contratos de suprimento às distribuidoras, já incorpora um componente postal na parcela de transporte que forma o preço do gás praticado pela estatal. “Considerando que a Petrobras ainda detém participação majoritária do mercado de gás natural, a adoção da modalidade postal para todos os carregadores geraria menor impacto na forma como o mercado opera atualmente”, argumenta a nota técnica. Segundo uma fonte do governo, a proposta de adoção de uma tarifa uniforme para todo o sistema integrado visa a simplificação tarifária – o que ajudaria, no limite, a desafogar a ANP de ter de lidar com um regime mais complexo como o de entrada e saída. O tarifaço na malha do Sudeste, este ano, foi um exemplo das dificuldades de lidar com o modelo. De quebra, na visão do governo, a postalização avança na direção da fusão das áreas de mercado das diferentes transportadoras (a ANP definirá mecanismos transitórios para repasse de receita entre eles). Em tempo: uma outra implicação esperada com uma eventual volta das tarifas uniformes é dar a mesma condição de competição às diferentes fontes de suprimento, seja o gás oriundo do pré-sal, onshore, Bolívia, Argentina…
A tarifa postal uniforme foi um modelo historicamente adotado pela Petrobras quando a estatal ainda era a grande operadora dos gasodutos de transporte do país – antes da privatização da NTS e TAG. Foi um longo caminho de maturação até a revisão dos conceitos. A Resolução ANP 15/2014, há dez anos, já dizia que a tarifa deveria refletir, dentre outros pontos, “os determinantes de custos, tais como a distância entre os pontos de recebimento e de entrega”. Posteriormente, as primeiras discussões sobre a modernização do marco legal do setor, ainda no Gás para Crescer, no governo de Michel Temer (MDB), sedimentaram as bases para o modelo de entrada e saída – visto, na época, como um modelo mais condizente com a proposta de abertura do mercado. O regime de entrada e saída foi instituído pelo decreto 9.616/2018 e reafirmado pela Nova Lei do Gás, de 2021. E nesse embalo, a tarifa postal uniforme tem sido progressivamente substituída. Começou com a TBG em 2019 e, posteriormente, foi replicado para a NTS e TAG em 2021. No modelo vigente, a contratação da injeção do gás no sistema é independente da contratação da retirada. A inspiração veio do mercado europeu, maduro. Nada impede que um agente contrate as duas pontas (é comum, aliás), mas a essência do regime é permitir que produtores ou comercializadores, por exemplo, contratem a capacidade de entrada e distribuidoras ou consumidores a saída – dando, assim, uma liberdade maior de negociação. Pela metodologia híbrida aplicada pela ANP, as tarifas se aproximam mais dos custos associados. Essa mudança, no entanto, vem sendo feita de modo gradual e o fator locacional ainda representa uma parte menor dentro da metodologia tarifária híbrida adotada pelo regulador. No caso da TAG, a tarifa é composta por 90% de fator postal e 10% de fator locacional – que segue a metodologia da Distância Ponderada pela Capacidade (CWD, na sigla em inglês). No caso da NTS, a proporção é de 80%/20% e, na TBG, 50%/50%. O conceito postal, portanto, nunca foi de fato abandonado – embora as tarifas uniformes sim.
Na literatura internacional, há um entendimento de que a tarifa postal uniforme, calculada para recuperar o custo médio do sistema de transporte, contribui para o desenvolvimento de demanda em regiões aonde o gás não chegaria competitivo pela lógica do fator locacional. Por outro lado, a tarifa uniforme não reflete os custos associados ao transporte e, por permitir a ocorrência de subsídios cruzados entre os consumidores, tende a privilegiar a universalização em detrimento da emissão de sinais eficientes. Já a tarifação por entrada e saída permite que os usuários paguem pela injeção e retirada isoladamente, dando maior flexibilidade e liquidez à comercialização da molécula – é uma tendência em países que buscam mais concorrência. Tenta se aproximar mais dos custos associados ao transporte (mas num nível intermediário na comparação entre o modelo ponto a ponto, de um lado, e postal do outro). Mais transparente, ajuda a sinalizar congestionamentos e gargalos em pontos específicos do sistema – emitindo, assim, sinais que permitem a identificação dos investimentos necessários. A desvantagem, do outro lado da mesma moeda, é reforçar eventuais desigualdades regionais.
Fonte: Eixos