Um processo em curso na ANP para rever as tarifas das empresas transportadoras de gás natural se tornou um ponto de tensão no mercado, diante da possibilidade de alta nos valores cobrados pelas companhias nos próximos anos. Parte do mercado esperava queda nos custos dos gasodutos de longa distância. Porém, cálculos apresentados por pelo menos duas das cinco empresas que terão as tarifas revisitadas para o período 2026-2030 geraram repercussão, por indicar uma expressiva alta. A ANP abriu duas consultas públicas: uma sobre metodologia e outra sobre a revisão tarifária, já encerradas, mas ainda com audiências previstas. A tarifária terminou em 25 de setembro e terá audiência pública nesta quarta (08). Já a de metodologia se encerra no mesmo dia, mas não terá audiência. Caso as propostas sejam aprovadas pela agência, as novas tarifas podem elevar os custos dos gasodutos que levam o gás das regiões produtoras até os consumidores industriais e distribuidoras locais, e afetar a competitividade de alguns setores da economia. As empresas com tarifas a serem revistas são: Transportadora Associada de Gás (TAG), Nova Transportadora do Sudeste (NTS), Transportadora Brasileira Gasoduto Bolívia Brasil (TBG), Gás Ocidente e Transportadora Sulbrasileira de Gás (TSB). TAG, NTS e TBG respondem por mais de 90% da extensão total da malha no país.
Em nota, a ANP afirmou que, após a consulta pública, vai estipular a receita máxima permitida (RMP) de transporte, bem como os critérios de reajuste, revisão periódica e revisão extraordinária, nos termos da regulação, o que deve ser concluído até dezembro. “Em seguida, as transportadoras devem realizar os respectivos Processos de Oferta e Contratação de Capacidade de modo a definir as tarifas vigentes nos contratos firmes em 2026.” O IBP, que integra o Conselho de Usuários de Transporte de Gás, pediu o adiamento da consulta pública da revisão e sugere a adoção de uma tarifa provisória, até que todos os temas tenham uma decisão da ANP. “Defendemos a adoção de uma tarifa extraordinária até a análise desses pontos”, disse Sylvie D’Apote, diretora executiva de gás natural do instituto.
A Abegás considera necessário concatenar as duas consultas públicas para que se tenha uma sequência lógica no tratamento do tema. “Somos o último elo da cadeia e qualquer impacto é repassado para o consumidor”, disse Marcelo Mendonça, presidente-executivo da entidade.
O pedido de nova consulta pública foi feito pelo Fórum do Gás, que reúne representantes de toda a cadeia de valor do setor. Em carta enviada ao MME e à ANP, o grupo manifestou preocupação com a falta de clareza e o curto prazo para análise das propostas. “Estima-se que o impacto total da metodologia proposta seja de R$ 8,8 bilhões para a NTS e de R$ 9,6 bilhões para a TAG, considerando todos os ativos dos contratos legados.”
A reportagem procurou o ministro Alexandre Silveira, do MME, já que um eventual aumento contrasta com os objetivos do governo que defende o barateamento do gás para aumentar a competitividade da indústria brasileira.
“No contexto dessa política pública, encontram-se em andamento estudos visando à redução das tarifas de transporte de gás natural com racionalidade econômica e setorial, para que o consumidor pague uma tarifa justa e adequada associada ao risco do negócio”, disse o ministério, em nota.
O mercado de gás natural no Brasil começou a mudar em 2009, quando entrou em vigor a Lei 11.909, que fixou regras para a atividade de transporte. Com base nela, a ANP editou em 2014 a Resolução nº 15, estabelecendo critérios para o cálculo das tarifas, prevendo revisões periódicas a cada cinco anos. Em 2021, entrou em vigor a Nova Lei do Gás (Lei 14.134), que incluiu novas regras tarifárias.
Entre as duas leis, em meados da década de 2010, a se desfez dos gasodutos, como parte de um programa de desinvestimentos. Compradores desses ativos, TAG e NTS herdaram contratos firmados com a estatal, que foram se encerrando ao longo dos anos. São os chamados “contratos legados”. Segundo a ANP, TAG e NTS passarão por revisão tarifária com os primeiros contratos legados se encerrando ainda em 2025. Em contribuição à consulta pública sobre revisão tarifária, a afirmou que a NTS tem cinco contratos legados que se encerram nos próximos anos, ao passo que a TAG terá quatro.
A estatal estima que o fim de todos esses contratos, o impacto sobre as tarifas pode ser superior a R$ 20 bilhões. Procurada, a não comentou o tema. O receio do mercado está em mais uma onda de judicialização. Duas abordagens principais estão em debate: o custo histórico corrigido pela inflação com depreciação contábil e o valor residual definido nas planilhas dos contratos legados. Esses contratos asseguravam capacidade firme, tarifas definidas e regras próprias de depreciação e remuneração de investimentos. Para consumidores e especialistas, muitos desses ativos já foram amortizados, o que não justificaria novas cobranças. As empresas, por sua vez, alegam que a malha passou por melhorias, exige manutenção e que a revisão é indispensável.
O cálculo da revisão tarifária dos gasodutos usa como critério a base de remuneração de ativos, que considera o quanto já foi amortizado e os investimentos previstos em manutenção, expansão ou modernização. As transportadoras pedem que esses investimentos entrem na base de remuneração ou nas receitas tarifárias.
Se a ANP acatar, esses custos serão repassados ao consumidor. Em contribuição à consulta pública da revisão tarifária, a estimou que mais de 90% dos ativos das malhas Sudeste e Nordeste, detidas por NTS e TAG, respectivamente, já foram amortizados. A revisão tarifária também considera o WACC, que mede o retorno do investimento. Se ele subir com o ambiente macroeconômico, mesmo ativos já amortizados vão gerar retorno mais alto, elevando as tarifas. Um ponto em aberto envolve termelétricas cujos contratos de gás natural encerraram-se a partir de 2023. A expectativa era a realização do leilão de reserva de capacidade, no qual as usinas descontratadas fechariam contratos de disponibilidade com o sistema elétrico. O leilão está previsto para 2026. Se não firmarem contratos no leilão, usinas podem ser desativadas ou buscar alternativas como contratar gás fora da rede. Isso levaria a um aumento nas tarifas de transporte. Sem térmicas, o custo do transporte passa a ser rateado por menos usuários da rede.
Esse risco está presente nos cenários apresentados pelas transportadoras. Ainda não está claro se o risco de menor demanda ficará com o transportador, com o carregador (aquele que contratou capacidade de transporte) ou será socializado entre todos os usuários remanescentes.
Com a incerteza, NTS e TAG fizeram contas para uma revisão pela qual passarão pela primeira vez. A TBG já passou pela revisão entre 2019 e 2020 e terá suas tarifas novamente revistas, desta vez para o ciclo 2026-2030. O presidente da TBG, Jorge Hijjar, afirma que a empresa opera em condições estáveis. “Nossos resultados são atrelados diretamente aos nossos ativos (dutos, estações) e aos investimentos que foram e vêm sendo feitos”, disse Hijjar. A fala do executivo expõe a diferença de contexto: enquanto TAG e NTS enfrentam sua primeira revisão, a TBG já conhece os efeitos práticos do modelo regulatório.
Em nota, a TAG diz que os riscos de aumento tarifário associado a cenários com e sem térmicas decorrem de evasão de volume de contratação de capacidade atual na rede e não do aumento da remuneração do transportador. “Práticas de ‘by-pass’ do sistema de transporte [quando consumidores buscam rotas alternativas de suprimento, sem usar a rede regulada], falta de visão integrada do planejamento energético (gás e eletricidade) e a eventual descontratação de térmicas conectadas que não tenham renovação de contratos no próximo leilão põem em risco os fundamentos do sistema, afetando a segurança de abastecimento e a percepção de custo para os usuários”, diz a nota. A empresa aponta ainda que, entre 2022 e 2025, as tarifas de transporte caíram cerca de 17% diante de uma inflação da ordem de 20% no mesmo período. A NTS afirmou, também em nota, que a proposta para o ciclo tarifário 2026-2030 inclui investimentos voltados para a garantia das condições operacionais, a preservação da integridade, segurança, confiabilidade e a continuidade da prestação do serviço de transporte.
Apresenta também a realização de novos projetos voltados à expansão e garantia de suprimento da malha dutoviária. A proposta, diz a NTS, prevê também a remuneração do valor residual de ativos legados vencidos mas não totalmente depreciados e investimentos realizados para a garantia das condições operacionais. Tais investimentos, informa a NTS, foram feitos desde a privatização da rede e ainda não foram recuperados. A NTS considerou na proposta à ANP dois cenários que variam em função da contratação das térmicas.
Se considerada a contratação anual das térmicas prevê-se uma redução tarifária da ordem de 4% no ano de 2026. Sem a contratação, a NTS estima aumento de 22% em 2026. Procurada, a Gás Ocidente não comentou até o fechamento desta edição. O diretor da TSB, Walter Farioli, diz que a condição da empresa é diferente, já que ela não tem contratos legados e tem pouca relevância em fatores que podem influenciar o cálculo das tarifas. “No caso da TBS, a conta é simples e pragmática e conforme estabelece a portaria da ANP que orienta a formação das tarifas”, explica. A visão das transportadoras, no entanto, contrasta com a preocupação dos consumidores. Para a Abrace, associação que representa os grandes consumidores livres de energia, o aumento proposto pode comprometer o desenvolvimento do mercado de gás no país.
“A proposta de revisão tarifária dos transportadores vai na contramão de todos os esforços feitos até aqui para desenvolver o mercado, desde antes da aprovação da Lei do Gás em 2021. O custo atual está destruindo a demanda industrial, principal consumidora do gás. O aumento proposto só reforça esse movimento e o resultado será menos produção, menos emprego, renda e desenvolvimento”, diz Adrianno Lorenzon, diretor de gás natural da Abrace.
Fonte: Valor Econômico
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