A Câmara dos Deputados aprovou, em 2 de setembro, por 351 a 101 votos, o Projeto de Lei 6407/2013 – o chamado PL do Gás Natural. A proposta, agora no Senado, é passo fundamental para o desenvolvimento do setor, pois dá acesso às infraestruturas essenciais, garante independência no transporte, lança programa de desconcentração do mercado e agiliza a outorga dos gasodutos de transporte e estruturas de estocagem, que passa de concessão para autorização.
Como é usual no processo legislativo, o PL sofreu críticas durante sua tramitação. Visto inicialmente como audacioso, teve sua ação reformadora embaraçada ao ser acusado de adentrar em temas atinentes à esfera estadual, como a distribuição. Era resistência esperada, pois em setores com grande interdependência entre seus componentes e propriedade dispersa entre os agentes, é comum que as mudanças esbarrem na dificuldade de todos os segmentos perceberem as relações sistêmicas mais amplas de suas decisões. Assim, ainda que um movimento de transformação setorial seja horizontalmente benéfico, é difícil fazê-lo de forma simultânea e consensual.
Embora o PL não invadisse a competência estadual, seus defensores, em busca de convergência, retiraram do texto dispositivos que, embora primordiais, geravam controvérsia e poderiam atrasar seu andamento. A ausência no texto de uma definição uniforme da figura do consumidor livre é um caso. A atribuição, desse modo, permanece com cada Estado, o que, na prática, resulta em grandes disparidades. Os parâmetros de consumo para que um consumidor seja classificado como livre, por exemplo, variam de 500 mil (o que na prática habilita apenas termelétricas) a 10 mil m3 /dia – diferenças da ordem de 4.900%.
A exclusão de tais pontos do texto, entretanto, não pacificou seus críticos, que apenas mudaram de opinião. A partir dali o PL, antes ousado, passou a ser considerado “tímido” e até “desnecessário”. O pano de fundo desse debate envolve direitos de propriedade, custos de transação, estruturas de governança do setor, busca de renda e atuação do Estado na promoção do desenvolvimento econômico ou na manutenção de mercados exclusivos. Embora o desenho de mercado atual tenha imposto ao setor um crescimento acanhado, muito aquém do seu potencial, não se trata de uma disputa entre bons e maus, mas de visões diferentes sobre a forma pela qual a estrutura de mercado pode ajudar ou dificultar o desenvolvimento.
Nessa diversidade de opiniões, há um ponto que, acredita-se, todos deveriam compreender: o monopólio das distribuidoras, definido no § 2º do art. 25 da Constituição Federal – “Cabe aos Estados explorar diretamente, ou mediante concessão, os serviços locais de gás canalizado, na forma da lei, vedada a edição de medida provisória para a sua regulamentação” – se refere, exclusivamente, à distribuição de gás natural.
À primeira vista essa definição parece simples, mas alguns Estados criaram regras e contratos indicando que a distribuição seria mais ampla do que, de fato, conceitualmente e legalmente ela é. Nessa confusão, é preciso deixar claro: comercialização de gás natural não é distribuição. Compra de molécula não é distribuição. Movimentação de gás natural para consumo próprio, sem uso de gasodutos de distribuição, não é distribuição. Atribuir às concessionárias atividades que vão além da distribuição gera insegurança jurídica e cria obstáculos para aqueles que já estão prontos para investir no setor e/ou consumir a molécula. E isso não é uma questão de opinião.
A atividade de comercialização de gás não reúne as características de um monopólio natural e é potencialmente competitiva ao longo de toda a cadeia. Impor um monopólio ao consumidor sem justificativa econômica, tornando-o dependente de um único ofertante, é condenável sob os mais variados aspectos.
Como o PL, frise-se, não dispõe sobre a distribuição de gás – leis não podem contrariar normas constitucionais, sob pena de inconstitucionalidade -, um passo fundamental para o pleno desenvolvimento desse mercado é levar esse debate aos Estados. Nesse sentido, urge modernizar as legislações estaduais, fortalecer suas agências reguladoras, aprimorar e harmonizar suas regras e ao mesmo tempo garantir o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos celebrados com as distribuidoras locais, respeitando seu papel de agentes essenciais para o sucesso do setor.
Nesse sentido, é louvável a iniciativa do Comitê de Monitoramento da Abertura de Gás Natural de elaborar o Manual de Boas Práticas Regulatórias, endereçado aos estados e ao Distrito Federal. O documento, colocado em consulta pública pela ANP, contém um conjunto de referências cujo objetivo é orientar e incentivar, sem imposição, o aperfeiçoamento e a uniformização das normas estaduais, além do fortalecimento de suas agências reguladoras.
Os Estados -e distribuidoras – que saírem na frente e se adaptarem às futuras diretrizes e regras vão naturalmente atrair termelétricas e investimentos dos setores industriais, ávidos pela boa nova do gás a preço competitivo e suprimento garantido e diversificado. Os exemplos positivos deverão atrair outros, tornando o desenvolvimento um caminho sem volta. Para todos, inclusive para as distribuidoras.
Como o PL do Gás não trata da distribuição e a adesão às boas práticas será voluntária, espera-se que os Estados liderem sua própria modernização junto às distribuidoras e ofereçam uma visão do futuro que permita aos demais agentes percebê-los como aliados do desenvolvimento do setor de gás natural e do Brasil.
Fonte: Valor Econômico – Marcos Cintra e Daniela Santos