Ao mesmo tempo em que tem reduzido o envio de gás natural à Petrobras, a boliviana YPFB busca novos clientes no Brasil, a preços mais atraentes. E comercializadoras brasileiras se lançam numa corrida pelo gás da Bolívia, na tentativa de desenvolver o mercado livre por aqui.
Analistas, contudo, veem um cenário adverso — pelo menos por ora — para importação privada do gás boliviano.
A seguir, a gas week apresenta um raio-x da movimentação das comercializadoras em busca do gás da Bolívia; analisa as condições do mercado para desenvolvimento do negócio; e mostra como o gás importado entrou até na pauta da corrida eleitoral.
Quem está de olho no gás boliviano
A lista tem crescido: em março, a Tradener fechou um acordo de dois anos com a YPFB, para compra de até 2,2 milhões de m³/dia na modalidade interruptível, e concluiu, em junho, um projeto piloto para fornecimento do insumo à Compagas.
A Gas Bridge também tem um piloto com a distribuidora paranaense previsto para este ano.
Em julho, foi a vez da CDGN, subsidiária do grupo MDC, anunciar um contrato para importação de até 4 milhões de m³/dia.
Além delas, a TotalEnergies Brasil e a Compass fecharam acordo de intenções com a YPFB, para estudar uma aliança para comercialização no mercado brasileiro. E a Blueshift entrou com pedido de autorização para importar 300 mil m³/dia.
A Bolívia já deu um sinal claro de que pretende buscar condições melhores de preços, ao deslocar parte dos volumes enviados à Petrobras para um contrato mais vantajoso com a Argentina.
A busca por novos clientes no Brasil se insere nesse contexto, em que a YPFB, com gás escasso, busca elevar o preço médio pago pelo seu gás.
A Bolívia tem um problema estrutural para aumentar sua oferta e, assim, atender à demanda de todos os seus parceiros comerciais. Com o aumento do gás enviado à Argentina, resta a dúvida de quanto, de fato, está disponível para as comercializadoras brasileiras.
Curto
Seis meses após assinar o seu contrato com a YPFB, a Tradener já fez um primeiro teste de fornecimento de 10 mil m³/dia de gás flexível à Compagas. Mas ainda busca os primeiros clientes finais — além do mercado livre, negocia um contrato com a própria distribuidora do Paraná.
“Acredito que vai começar devagar, em pequenas quantidades, mas acredito que começaremos a firmar [primeiros contratos]. Tendo produto, o mercado se ajeita”, comenta o presidente da Tradener, Walfrido Avila.
Em função da alta demanda da Argentina, a janela ainda está fechada. Mas a partir deste mês, após o fim do inverno a expectativa é que comece a sobrar alguns volumes. Nada, porém, próximo dos 2,2 milhões de m³/dia que a comercializadora contratou junto à YPFB.
O modelo de negócios da Tradener se baseia na flexibilidade da entrega de gás. É da natureza dos contratos interruptíveis — que preveem a interrupção ou reativação dos envios diante da disponibilidade de molécula por parte dos supridores.
A empresa não pretende trabalhar com cláusulas de take-or-pay (volume mínimo de gás que deve ser retirado, para não pagamento de penalidades).
Conta também com os volumes oriundos da produção própria da companhia, no campo de Barra Bonita, no Paraná. A concessão tem capacidade para produzir cerca de 100 mil m³/dia, dos quais 30 mil m³/dia serão consumidos pela termelétrica Barra Bonita I (10 MW), em Pitanga (PR). O restante poderá destinado às indústrias, via gás natural comprimido (GNC).
Preços flexíveis
A ideia da CDGN é começar com produtos de curtíssimo prazo (programações semanais, por exemplo), para, no futuro, ofertar contratos de até três a quatro meses. Conta com a flexibilidade dos preços previstos no contrato com a YPFB.
“Muitas vezes, para a Bolívia não vale a pena despachar por um determinado preço [num determinado momento], mas às vezes com um [preço] um pouco maior, passa a fazer sentido para ela e para o consumidor”, explica o diretor de Novos Negócios da MDC, Luciano Vilas Boas.
“Trabalharemos com um intervalo de preços que permite programações mais dinâmicas, para que tenhamos mais condições de conseguir capturar oportunidades de mercado”.
Na prática, a companhia oferece dia a dia opções de volumes diferentes, a preços também variáveis. “Pode ser que tenhamos determinados volumes pequenos a um preço menor ou volumes grandes a um preço maior. Temos flexibilidade para programar diferentes janelas”.
O executivo diz que a CDGN não será capaz de oferecer um gás barato, mas terá preços mais atrativos que aqueles oferecidos pela Petrobras nos novos contratos com as distribuidoras — da ordem de US$ 20 o milhão de BTU, no city-gate.
Acredita assim que, num primeiro momento, os volumes serão baixos, mas “o importante é começar a ofertar logo ao mercado”.
Isto é, os primeiros contratos tendem a ser fechados com as distribuidoras, em função das limitações das regulações estaduais — que demandam aviso prévio para migração para o ambiente livre com meses de antecedência, mesmo que para volumes adicionais.
“As regras dos estados não ajudam muito, vemos necessidade de evolução. Mas acreditamos que, em até um ano, veremos um mercado livre funcionando”, afirma.
Cenário de mercado é desfavorável
Para o analista sênior de gás e GNL da Wood Mackenzie, Henrique dos Anjos, há pouco espaço para o envio de gás boliviano até o final do verão, mesmo com a redução gradual da demanda argentina nos próximos meses.
Segundo ele, dois fatores vão influenciar as janelas de “sobra de gás” para as comercializadoras brasileiras:
O despacho da UTE Cuiabá, da Âmbar Energia, que foi autorizada a substituir as térmicas do leilão emergencial de energia de 2021, atrasadas, pela termelétrica do Mato Grosso; e quanto a Petrobras vai demandar no verão, sobretudo diante do atraso na operação do Rota 3.
“A Petrobras vai querer o máximo possível de gás da Bolívia nos próximos meses, para reduzir a dependência do GNL. O Rota 3 é fundamental para que haja maior espaço para outros compradores. Acredito que em 2023 deve haver mais folga”, explica.
Contratos Ele crê também que os contratos interruptíveis devem fazer mais sentido, de fato, no desenvolvimento desses negócios com as distribuidoras, em busca de alternativas para reduzir a dependência da Petrobras.
“Contrato interruptível é mais voltado para compor portfólio. Primeiro as indústrias precisam ir atrás de gás firme, no mercado livre, para só depois buscar o interruptível”, analisa.
Na visão do CEO da consultoria Gas Energy, Rivaldo Moreira Neto, a situação da Argentina tende a ficar menos estressada com a chegada do verão.
Ele vê com ceticismo, no entanto, a viabilidade de importações de gás boliviano em grandes volumes.
A Bolívia já está sobrecontratada com compromissos de fornecimento para o Brasil e Argentina, lembra. E, historicamente, os bolivianos sempre deram prioridade nas relações com estatais. “É uma competição muito difícil para os comercializadores privados”, afirma.
E na Argentina?
O governo argentino celebrou, em agosto, os primeiros contratos do gasoduto Néstor Kirchner — Vaca Muerta à Buenos Aires, numa primeira fase.
Espera-se que o projeto colabore com a redução da dependência das importações, uma peça importante na dinâmica do mercado de gás do Cone Sul.
Henrique dos Anjos, da Wood Mackenzie, entende que um efeito pode ser a mudança no perfil dos contratos, abrindo espaço para contratos firmes entre YPFB e novas empresas no Brasil — sobretudo no verão. “Há um risco de a Argentina demandar gás da Bolívia só no inverno”.
Rivaldo Neto ressalva que ainda é cedo para se ter uma real dimensão do volume que poderia ser disponibilizado ao Brasil. “A Argentina deve reduzir a dependência dela da importação de gás, mas eles têm um problema histórico de preços regulados que podem desincentivar os produtores locais. Isso já aconteceu antes”.
Gás na corrida eleitoral
Uma possível mudança na presidência do Brasil é mais uma peça do tabuleiro, na análise do cenário de mercado do gás nos próximos anos.
Esta semana o presidente boliviano, Luís Arce, veio ao encontro de Lula (PT), em São Paulo. Sinais da reaproximação entre os dois países, num eventual novo governo petista. Arce não esteve com Jair Bolsonaro (PL).
De Lula, Arce ouviu promessas de apoio à entrada da Bolívia no Mercosul. Há duas semanas, Lula já havia feito um primeiro, ao declarar que “facilitou” a nacionalização das duas refinarias da Petrobras no país vizinho, em 2006, durante o governo de Evo Morales. A Bolívia pagou US$ 112 milhões pelos ativos, na ocasião.
A posição de Lula contrasta com a política externa brasileira do governo Bolsonaro — que se distanciou do papel de liderança regional do Brasil na América Latina e esvaziou as relações bilaterais, sobretudo com os governos de liderança de esquerda.
Em maio, Bolsonaro chegou a insinuar, sem apresentar evidências, que a redução do envio de gás boliviano ao Brasil, em detrimento do aumento das vendas para a Argentina se tratava de uma “orquestração” para “favorecer vocês sabem quem”.
Fonte: Epbr
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